Parque Rachel de Queiroz

Por Architectus S/S
12 minutos

Parque Rachel de Queiroz (texto fornecido pelos autores)

Nas primeiras horas da manhã já começa o movimento. Em sua maioria, frequentadores com roupas de ginástica escolhem começar o dia praticando alguma atividade física da sua preferência. Caminhada, corrida, academia ao ar livre, bicicleta, futebol e vôlei são apenas algumas das opções disponíveis. Tudo isso às margens de 9 lagoas interconectadas, as wetlands. Esse é apenas um breve resumo do que se pode encontrar na 1° etapa do Parque Rachel de Queiroz.


Fotografia: Joana França

Com 10 km de extensão e cerca de 203 hectares, quando finalizado, o Parque será o 2° maior de Fortaleza – CE. Dada a sua grande extensão, o espaço foi dividido em 19 trechos, dos quais 6 já foram executados. O conceito utilizado para a concepção do projeto foi o de Parque Linear, utilizando o sistema viário existente como conexão entre as áreas verdes que cortam diretamente 8 bairros na zona Oeste da capital cearense.


Fotografia: Joana França

O sexto trecho, recém-inaugurado, resgata uma área degradada que há muitos anos era motivo de preocupação para a população do bairro Presidente Kennedy. O local, maior área disponível para intervenção do Parque, era um grande terreno baldio, tomado pelo depósito de lixo irregular e esgoto clandestino. Essa situação contribuía para agravar a poluição do Riacho Cachoeirinha, recurso hídrico que corta o terreno e que estrutura a maior área do parque. Além disso, devido ao intenso processo de adensamento dessa região da cidade e a consequente diminuição das áreas permeáveis no entorno, acarretou alagamentos frequentes no terreno pela sobrecarga no sistema de escoamento das águas pluviais.

comparação de antes x depois

Por se tratar de uma área de preservação municipal alagada, o projeto do Parque Rachel de Queiroz adotou a drenagem como eixo estruturador. Para melhorar a qualidade da água do Riacho Cachoeirinha, bem como criar um sistema de amortecimento de cheias foi empregada a técnica das wetlands.


Croqui Wetlands


Detalhes Aduelas



Após estudos hidrológicos, foram propostas 9 lagoas interconectadas que realizam um processo de filtragem natural das águas do Riacho e de galerias pluviais, através de decantação e fitorremediação. Esse processo é realizado por microorganismos que ficam fixados tanto na superfície do solo, quanto nas raízes das plantas aquáticas das lagoas.


Masterplan com fluxo hídrico


Fotografias: Joana França

Ou seja, além de marcarem o ambiente do Parque através do seu potencial paisagístico, as wetlands são uma estratégia fundamental para a recuperação ambiental da área. Aliada a isso, a implantação de áreas verdes, que envolveu obras de terraplanagem e o plantio de cerca de 600 árvores, foi determinante para melhoria das condições de desenvolvimento da fauna e flora locais. Após a inauguração desse trecho do Parque, os frequentadores já se acostumaram a ver diferentes espécies do ecossistema nativo em meio a paisagem urbana.


Fotografias: Joana França

Os caminhos entre as lagoas conduzem os frequentadores para áreas de permanência estruturadas com diversos equipamentos de cultura, esporte e lazer. Anfiteatro, cachorródromo, quadras poliesportivas, playgrounds, espiribol, espaço leitura, academia ao ar livre são apenas algumas das atividades disponíveis. Uma pista bidirecional que circunda todo o perímetro do Parque garante um espaço seguro e apropriado para caminhadas, corridas e passeios de bicicleta. Desde o início do projeto, a diversidade de usos proporcionada pelo programa de necessidades do Parque Rachel de Queiroz foi pensada para incluir e incentivar a apropriação do espaço pela população, entendendo o uso da área como componente fundamental para a sustentabilidade ambiental, evitando que volte a se transformar em local de depósito clandestino de lixo, entulho ou esgoto.


Fotografias: Joana França

Por se tratar de uma área extensa, a conexão entre os espaços do Parque era essencial para que o mesmo fosse bem utilizado como um todo. Pensando nisso, foram propostas duas passarelas metálicas para que o Riacho Cachoeirinha não se tornasse uma barreira física. Executadas com perfis tubulares em aço e piso em concreto, as passarelas garantem fácil acesso, principalmente, aos frequentadores que chegam pela R. Licurgo Montenegro.

O projeto do mobiliário urbano do Parque levou em consideração dois princípios: sustentabilidade e resistência. Os brinquedos do playground, espaço PET e caramanchões foram executados com peças de eucalipto tratado. Já os bancos possuem assentos em madeira biossintética e estrutura de concreto.


Fotografias: Joana França

Além de todo o ambiente construído do Parque Rachel de Queiroz, a identidade visual também fez parte do projeto desenvolvido pela Architectus S/S. Desde a logo que evidencia as wetlands como protagonistas até a sinalização com placas e totens que não só direcionam, como educam e informam. Tudo isso para qualificar esse espaço público em diferentes níveis.

É importante contextualizar a área em que o projeto foi implantado: zona Oeste de Fortaleza, marcada por bairros populares que tiveram um alto crescimento populacional nos últimos anos. A região, mesmo detentora de grandes áreas livres, era carente de espaços públicos qualificados até a inauguração do Parque Rachel de Queiroz. Todos esses fatores explicam a rápida apropriação pela comunidade do entorno, inclusive impulsionando o comércio tanto formal, quanto informal na região.


Fotografia: Joana França

Poucos meses após a inauguração do Parque Rachel de Queiroz, já é difícil lembrar do terreno que trazia tantos problemas para a população. A transformação em um espaço público movimentado, vivo, pulsante, foi rápida. Urbanidade aplicada no melhor sentido da palavra.


Sobre o projeto: Entrevista exclusiva para MDC.

por Elton Timbó (E.T.) e Gerson Amaral (G.A.)

MDC – Como vocês contextualizam essa obra no conjunto de toda a sua produção?

E.T. – Nós (Architectus) atuamos há 20 anos no mercado de projetos públicos, nesse tempo tivemos a oportunidade de projetar uma vasta gama de temas, seja na área da arquitetura, do urbanismo, do paisagismo e disciplinas de engenharia.
O Parque Rachel de Queiroz, por sua dimensão e interação direta na malha urbana de Fortaleza, impactando 14 bairros, nos trouxe muitos desafios e ao mesmo tempo a oportunidade de adotar técnicas e conhecimentos diversos adquiridos nesses 20 anos de intensa atividade profissional.

G.A. – O Parque Rachel de Queiroz, pela sua grande escala, complexidade e impacto social, foi uma grande oportunidade de propor soluções projetuais que já haviam sido testadas em projetos anteriores, em menor escala, viabilizando a aplicação de princípios de requalificação urbana, ecologia e sustentabilidade que até então foram inéditos para a capital cearense nessa escala de intervenção.

MDC – Como foi o mecanismo de contratação do projeto?

E.T. – Licitação. Através dessa concorrência pública ganhamos o direito de projetar os 203ha do Parque Linear Rachel de Queiroz. O projeto compreende um Parque Linear de 19 trechos, destes 5 trechos foram executados até o momento. O projeto foco desse artigo compreende o último trecho inaugurado: trecho 6.

MDC – Como foi a fase de concepção do projeto? Houve grandes inflexões conceituais? Vocês destacariam algum momento significativo do processo?

E.T. – Após uma demorada fase de Levantamento Topográfico Cadastral, vimos que as conexões urbanas ainda existiam e a partir daí os conceitos foram firmados. O Parque Linear seria possível desde que houvesse algumas desapropriações e remanejamentos pontuais. Além das conexões, havia problemas com alagamentos e necessidade de melhorias na qualidade das águas residuais, além de espaços qualificados ao esporte, lazer e contemplação.

G.A. – O sistema de wetland concebido para alguns trechos do parque surgiu de uma análise crítica feita de outras intervenções feitas em corpos hídricos na cidade em contextos ambientais e urbanos semelhantes. O projeto do Parque Rachel de Queiroz propôs uma nova forma a lidar com a dinâmica do Riacho Cachoeirinha (que corta o trecho 6) com uma solução de infraestrutura que reconfigura a paisagem a partir de sua dinâmica natural, viabilizando uma recuperação ambiental alinhada com as características e usos urbanos.

MDC – Nas etapas de desenvolvimento executivo e elaboração de projetos de engenharia houve participação ativa dos autores?

E.T. – Na concepção dos projetos da wetlands tivemos a participação ativa de engenheiros das áreas de hidráulica, terraplenagem e estruturas de concreto; estes desenvolveram os complementos necessários que tornaram realidade os espaços e soluções projetadas por nós.

G.A. – A concepção do sistema hidráulico das wetlands foi todo desenvolvido pela equipe de urbanismo e paisagismo. O pré-dimensionamento do sistema foi avaliado e submetido ao cálculo hidráulico que apontou os ajustes necessários de vazão e níveis, os quais foram devidamente compatibilizados pelos autores.

MDC – Houve variações de projeto decorrentes da interlocução com esses outros atores que modificaram as soluções originais? Se sim, podem comentar as mais importantes?

G.A. – Houve uma certa resistência, desde o princípio, na adoção do sistema de wetland pela falta de uma referência nacional de sistema semelhante. Ao longo do processo de desenvolvimento de projeto diversos surgiram propostas de modificação do sistema para soluções mais tradicionais como barragens, piscinões em concreto ou impermeabilização das margens das lagoas, mas todas foram descartadas dando prioridade a soluções mais naturais.

A pedido da fiscalização do projeto por parte da Prefeitura Municipal, toda a proposta de urbanismo teve suas áreas pavimentadas reduzidas ao mínimo necessário para atender a legislação ambiental vigente. Igualmente foram reduzidas consideravelmente as propostas de construção de quiosques, guaritas e equipamentos que ocasionassem a impermeabilização do solo.

MDC – Os autores dos projetos tiveram participação no processo de construção/implementação da obra?

E.T. – Sim, felizmente o cliente (Prefeitura Municipal de Fortaleza) sempre pedia nossa participação nas principais tomadas de decisão na obra, desde a modificação de especificações de materiais a determinação de níveis e vazões a serem adotadas nas lagoas. Lutamos muito para que tudo se mantivesse conforme projetado.

G.A. – O acompanhamento do projeto foi fundamental para assegurar a manutenção do conceito do sistema, fazendo com que os ajustes necessários durante as obras mantivessem os princípios que balizaram as soluções.

MDC – Vocês destacariam algum fato relevante da vida do edifício/espaço livre após a sua construção?

E.T. – Vários fatos: melhorias reais na qualidade das águas, recomposição da flora e fauna, garantia de mobilidade, permeabilidade e acessibilidade, impacto positivo na cultura local, no esporte e lazer, além de um intenso uso da população. Conseguiu-se dar o uso adequado a essas áreas de fundo de vale urbanas, fazendo nascer a sensação de pertencimento e consequente cuidado por parte da população local.

G.A. – A apropriação da população foi imediata, transformando uma área antes abandonada e degradada em uma nova centralidade para toda uma região da cidade. Poucos meses após sua inauguração o espaço já passou a figurar como um dos cartões postais da capital, atraindo visitantes de toda a cidade e região metropolitana.

MDC – Se esse mesmo problema de projeto chegasse hoje a suas mãos, fariam algo diferente?

G.A.– Conceitualmente os princípios adotados seriam os mesmos. Eventualmente seriam feitas modificações em detalhes construtivos específicos como mobiliário urbano e nos dispositivos de conexão entre as lagoas.

MDC – Como vocês contextualizam essa obra no panorama da arquitetura contemporânea do seu país?

E.T. – Ainda são poucos os projetos no Brasil e no mundo que abordam o manejo sustentável das águas superficiais aliado aos aspectos urbanos e comunitários. O projeto do Parque Raquel de Queiroz mostra que é possível avançarmos com esse olhar inovador da arquitetura e do urbanismo.

G.A. – Percebemos que o trecho 06 do Parque Rachel de Queiroz tem sido frequentemente citado, em sites e publicações especializadas, como um bom exemplo de sustentabilidade urbana. O contexto socioeconômico e ambiental onde se insere parece ter sido o grande diferencial dentro da produção contemporânea, ao se tornar um exemplo exitoso de aplicação dos conceitos de Soluções Baseadas na Natureza (SBN) para a recuperação ambiental de um recurso hídrico associado a requalificação urbana em zona pobre e em um país tropical.

MDC – Há algo relativo ao projeto e ao processo que gostariam de acrescentar e que não foi contemplado pelas perguntas anteriores?

E.T. – O Projeto do Parque Rachel de Queiroz trata-se de uma grande Requalificação Urbana com extensão de 10Km atravessando diversos bairros de ocupação consolidada e densa da capital cearense. Todos os 19 trechos do Parque margeiam recursos hídricos e áreas verdes plenamente possíveis de interligações. Ao adotar a drenagem como eixo estruturador para o projeto, viu-se que esses recursos hídricos tinham alta carga de matéria orgânica, por isso a adoção da técnica de wetlands (alagados construídos) com uso de margens vegetadas para melhoria da qualidade dessas águas e valorização da fauna e flora locais. O conjunto desses alagados faz também o importante papel de lagoas de retenção na ocorrência de enxurradas acabando com as inundações que constantemente aconteciam.

Quando executado em sua completude, o Parque Rachel de Queiroz será o segundo maior parque da cidade de Fortaleza.


projeto executivo


EXECUTIVO COMPLETO

8 pranchas (pdf).
30,52mb


localização e ficha técnica do projeto

Local: Fortaleza – CE
Ano de projeto: 2022
Área total do parque: 2.030.000,00 m²
Área total da primeira etapa (trecho 6, 1ª etapa): 90.969,41 m²
Arquitetura, urbanismo e paisagismo: Architectus – Elton Timbó, Mariana Furlani, Alexandre Landim, Ricardo Sabóia, Gerson Amaral, Jaqueline Martinez (autores); Tatiana Rocha, Fernanda Frota, Carolina Vieira, Vitor Alencar, Jairo Diniz, Paulo André, Flaviane Rodrigues (equipe)


Construtora: Athos Construções
Estrutura metálica:
Eng. Francisco Holanda
Estrutura de concreto:
Eng. Juarez Santiago
Instalações:
Eng. Américo Farias, Eng. Osvaldo Holanda, Eng. Allisson dos Santos, Eugênio Mesquita, Erasmo Carlos
Orçamento: Lyncoln Freitas, Carmilson Andrade
Consultoria ambiental: Gabriel Theophilo (Eng. Agrônomo), Ricardo Augusto (Geólogo), Juarez Santiago (Eng. Civil)
Contratante: prefeitura municipal de Fortaleza


Fotos:  Joana França
Contato: comercial@architectus.com.br


galeria


colaboração editorial

Renan Maia

deseja citar esse post?

TIMBÓ, Elton. FURLANI, Mariana. LANDIM, Alexandre. SABOIA, Ricardo. AMARAL, Gerson. MARTINEZ, Jaqueline. “Parque Rachel de Queiroz”. MDC: Mínimo Denominador Comum, Belo Horizonte, s.n., set-2023. Disponível em http://www.mdc.arq.br/2023/09/13/parque-rachel-de-queiroz. Acesso em: [incluir data do acesso].


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Abrigo Alto, Abrigo Baixo e Pavilhão

Por Gru.a
8 minutos

Abrigos do Vale (texto fornecido pelos autores)

Os Abrigos do Vale fazem parte de um conjunto de 3 edificações projetadas para um sítio no Vale das Videiras, região serrana do Rio de Janeiro: “Pavilhão” (primeiro a ser construído, em 2016), “Abrigo Alto” e “Abrigo Baixo” projetados em 2019 e finalizados em 2022. Cada um, com 30m2 de área interna, tem espaço reservado para dormir – fechado por uma leve cortina -, uma sala ligada a um deck frontal, uma pequena copa e um banheiro completo.

Pavilhão, Abrigo Alto e Abrigo Baixo, respectivamente.
Fotografias: Rafael Salim e Federico Cairoli (Pavilhão) / Rafael Salim (Abrigos)

Os Abrigos do Vale seguem o mesmo sistema construtivo e módulos espaciais: vãos de 3m e 5m com apoios que variam de pilares em madeira a muros de alvenaria cerâmica. O vigamento de madeira maciça sustenta a cobertura em painéis de telha trapezoidal termoacústica, que se debruçam formando beirais de até 1,75m.

Fotografia: Rafael Salim

Nos ambientes mais controlados (quarto e banheiros) uma fina laje em concreto armado funciona como forro, criando uma dupla camada de isolamento em relação ao exterior.

Abrigo Alto: Planta de piso inferior, térreo e cobertura + cortes

Abrigo Baixo: Planta de piso inferior, térreo e cobertura + cortes

No trecho que se debruça sobre a vista do vale, o “Abrigo Baixo” tem como fechamento um pano de painéis em compensado sarrafeado que se abre em duas alturas diferentes, remetendo ao sistema tradicional de portas de fazenda. Enquanto o “Abrigo Alto” tem como fechamento um pano de vidro em toda sua extensão, que, somado ao fechamento superior, conforma uma caixa translúcida e reflexiva.

Fechamentos Abrigo Baixo e Alto, respectivamente
Fotografias: Rafael Salim

Pavilhão das Videiras

O projeto para o pavilhão anexo a uma residência no Vale das Videiras, Rio de Janeiro, parte da premissa de disponibilizar um espaço aberto e, ao mesmo tempo, protegido do forte sol e chuva que incidem sobre a região. Localizada num platô pré-existente, a edificação foi pensada em função de sua relação com a casa situada no terreno, ativando o espaço intermediário entre as duas edificações.

Implantação

O grande plano de cobertura se inclina suavemente em direção ao vale, trazendo para o espaço interior a presença da encosta que se ergue paralelamente à nova construção.

Fotografia: Rafael Salim e Federico Cairoli

Abaixo da grande cobertura foram projetados uma cozinha, associada a um espaço para refeições, uma sauna e um espaço de 30m² de área coberta em que o solo vegetal se manteve intacto.

Pavilhão: Planta + corte

A associação de diferentes sistemas estruturais se dá de maneira a explorar as características de cada um deles: fundações em concreto moldado in-loco, pilares e vigas em madeira maciça, muros em alvenaria estrutural e lajotas em concreto pré-fabricado e ligações em aço.

Fotografia: Rafael Salim e Federico Cairoli


Sobre o projeto: Entrevista exclusiva para MDC.

por Pedro Varella (P.V.) e Caio Calafate (C.C.)

MDC – Como vocês contextualizam essa obra no conjunto de toda a sua produção?

P.V. / C.C. – As obras que estamos apresentando nesta publicação têm um lugar importante no conjunto da nossa obra, pois atravessam seis anos da produção do escritório. O Pavilhão e os Abrigos do Vale da Videiras foram construídos dentro de um mesmo sítio, entre 2016 e 2022, um arco de tempo bastante amplo. Antes deles, algumas questões já vinham sendo exploradas em obras que acabaram não sendo construídas, e, por sua vez, a sua realização vem mobilizando temas que tocam as obras que as sucederam, inclusive dentro do próprio sítio, como a Academia, já construída, e a Lavanderia, em obras.

O Pavilhão, primeira obra realizada dentre as três, foi uma espécie de exercício inaugural tectônico/construtivo de todo o conjunto, e, porque não, da produção de pequenas arquiteturas desenhadas no escritório. Nesta obra, a primeira que arrancamos do chão ao teto, pudemos operar algumas ideias que já vínhamos debatendo no escritório desde sua fundação, em 2013, como a relação da arquitetura com o solo, as questões relacionadas aos encaixes dos diferentes materiais, a serialidade/modularidade, a poética das coberturas e sua relação com o céu e, no limite, com o cosmos. Nos abrigos, que vieram cerca de dois/três anos depois, demos continuidade a essas pesquisas, adicionando outras temáticas que se impuseram pelas contingências geográficas/topográficas do trecho do sítio onde vieram a se implantar, e também pelo programa (abrigo), que exigiu a criação do hermetismo demandado pelo uso, condição distinta daquela exigida pelo Pavilhão. Assim sendo, o problema das vedações se impôs como uma novidade. No caso do Abrigo Alto, assim chamado por situar-se no trecho alto do terreno, desenhamos (como mediação com a paisagem) uma caixa de vidro que permite ampliar as visuais em direção ao horizonte. No caso do Abrigo Baixo, situado no trecho baixo do terreno, mais próximo à estrada de acesso, projetamos as fenestrações frontais com lâminas de compensado, guardando privacidade ao mesmo.

MDC – Como foi o mecanismo de contratação do projeto?

P.V. / C.C. – Estas obras tiveram contratação direta por cliente particular.

MDC – Como foi a fase de concepção do projeto? Houve grandes inflexões conceituais? Vocês destacariam algum momento significativo do processo?

P.V. / C.C. – Um dado particular deste projeto foi o trabalho de investigação das tecnologias construtivas tradicionais e passíveis de construção com equipe locais, de onde a utilização das fundações e lajes em concreto armado e o trabalho de alvenaria estrutural se apresentaram como boas opções. Junto a isso, trouxemos repertórios não tão convencionais na área, embora razoavelmente simples do ponto de vista executivo, como o telhado em telha termoacústica e junções metálicas. A concepção das três obras obedeceu a premissas que propusemos ao cliente, que desde o início, aprovou as escolhas. Em todas as três obras dedicamos muito tempo preliminar em visitas de observação e exploração das questões geográficas do terreno, algo que vemos como fundamental não apenas nestas, mas em todas as demais obras da nossa produção.

MDC – Nas etapas de desenvolvimento executivo e elaboração de projetos de engenharia houve participação ativa dos autores? Houve variações de projeto decorrentes da interlocução com esses outros atores que modificaram as soluções originais? Se sim, podem comentar as mais importantes?

P.V. / C.C. – Tivemos sempre um diálogo profícuo tanto com os projetistas de engenharia quanto com a equipe de obra. As três obras são relativamente simples do ponto de vista construtivo e programático, o que indica um processo com participação de poucos projetistas. Além dos arquitetos da nossa equipe, tivemos apenas a participação de um engenheiro calculista, o que foi essencial para que chegássemos a um bom dimensionamento das peças estruturais. No caso dos abrigos, o diálogo com os construtores locais – prévio ao desenvolvimento dos projetos – foi fundamental para que fossem elaboradas soluções condizentes com sua cultura construtiva.

MDC – Os autores dos projetos tiveram participação no processo de construção/implementação da obra?

P.V. / C.C. – Como a obra foi construída em local distante, fora da cidade em que atuamos, o trabalho exigiu comunicação intensa e atenta com o construtor, tanto nas fases preliminares quanto nos acabamentos finais. Foram realizadas visitas pontuais ao canteiro de obras. Esses momentos foram essenciais para a adequação de detalhes construtivos às possibilidades dos fornecedores. Isso se deu de forma mais intensa com os elementos fabricados em serralheria e marcenaria. 

MDC – Vocês destacariam algum fato relevante da vida do edifício/espaço livre após a sua construção?

P.V. / C.C. – Sim. Tem algo bonito que já se apresenta no Pavilhão. Uma vegetação toma hoje os pilares de madeira, ensejando algum entrosamento entre a construção e os elementos naturais.

MDC – Se esse mesmo problema de projeto chegasse hoje a suas mãos, fariam algo diferente?

P.V. / C.C. – Certamente. A despeito de gostarmos muito das obras, em todos os casos teríamos considerações a fazer, seja pelo simples desejo de fazer diferente, pela necessidade de antecipar problemas não previstos, mas, sobretudo, para dedicar mais tempo ao desenvolvimento de detalhes que gostaríamos de aperfeiçoar.

MDC – Como vocês contextualizam essa obra no panorama da arquitetura contemporânea do seu país?

P.V. / C.C. – Vemos como uma pequena contribuição a pesquisa e produção de arquitetas e arquitetos cuja obra admiramos e esperamos poder dialogar.


projeto executivo

PARTE 1:
ABRIGO ALTO

11 pranchas (pdf).
1,51mb

PARTE 2:
ABRIGO BAIXO

13 pranchas (pdf).
1,79mb

PARTE 3:
PAVILHÃO

9 pranchas (pdf).
1,07mb


ficha técnica – Abrigo Baixo e Abrigo Alto

Local: Vale das Videiras, Rio de Janeiro – RJ
Ano de projeto: 2019
Ano de conclusão: 2022
Autores: Pedro Varella, Caio Calafate, André Cavendish, Ingrid Colares, Antonio Machado
Área construída: 70m²


Cálculo estrutural:
Rodrigo Affonso
Projeto de Iluminação:
Maneco Quinderé
Construção: Alexandre M.

Fotos: Rafael Salim

ficha técnica – Pavilhão Videiras

Local: Vale das Videiras, Rio de Janeiro – RJ
Ano de projeto e conclusão: 2016
Autores: Pedro Varella, Caio Calafate, Sergio Garcia-Gasco, André Cavendish
Área construída: 150m²


Cálculo estrutural:
Rodrigo Affonso
Projeto de Iluminação:
Maneco Quinderé
Construção: Aleandro Souza da Silva

Fotos: Federico Cairoli e Rafael Salim
Fotos de obra: Gru.a
Contato: info@gruaarquitetos.com


galeria


colaboração editorial

Renan Maia

deseja citar esse post?

VARELLA, Pedro. CALAFATE, Caio. CAVENDISH, André. COLARES, Ingrid. MACHADO, Antonio. GARCIA-GASCO, Sergio. “Abrigo Alto, Abrigo Baixo e Pavilhão”. MDC: Mínimo Denominador Comum, Belo Horizonte, s.n., set-2023. Disponível em http://www.mdc.arq.br/2023/09/06/abrigo-alto-abrigo-baixo-e-pavilhao. Acesso em: [incluir data do acesso].


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Sede SEBRAE NACIONAL

por gruposp + Luciano Margotto
15 minutos

Sede SEBRAE Nacional (memorial do concurso 2008)

“Pátio, céu canalizado.
O pátio é o declive pelo qual se derrama o céu na casa.”
Jorge Luis Borges


O partido adotado no projeto responde a um só tempo às condicionantes urbanísticas de Brasília – incluindo as características topográficas do terreno – e ao caráter da arquitetura que se pretende para a nova sede do SEBRAE NACIONAL. O que se propõe não é um edifício, mas um conjunto arquitetônico com: 1) ênfase na espacialidade interna, objetivando a integração dos usuários assim como da paisagem construída e natural; 2) máxima flexibilidade para a organização dos escritórios; 3) preocupação em se obter ótimo desempenho ambiental e econômico.

Fotografia: Nelson Kon

o pátio

Todo o conjunto se desenvolve a partir de uma espacialidade interior. Desenvolvido em planta, o vazio adquire grande presença no interior do conjunto, na forma de pátio onde se localizam as atividades mais públicas. Ao redor desta praça interna, no térreo inferior encontra-se o espaço de formação e treinamento, salas multiuso, auditório, biblioteca e a cafeteria, enquanto no térreo superior estão os principais acessos do conjunto, com varandas abertas à cidade e ao lago.

Plantas (1) térreo inferior; (2) térreo superior

Fotografia: Pedro Kok

A TOPOGRAFIA E O SENTIDO ESPACIAL: O TÉRREO MULTIPLICADO

São dois os térreos. Optou-se por abrir um plano construído abaixo do nível da soleira, integrando-o verticalmente ao nível dos acessos, como térreos multiplicados, iluminados e ventilados pelo espaço livre que os circunscreve, o que lhes concede expressão arquitetônica. O chão do edifício, público, é construído, portanto, distinto do terreno natural que o circunda, destinado às áreas verdes permeáveis.

Cortes transversais e longitudinais

Fotografia: Pedro Kok

A DISTRIBUIÇÃO DO PROGRAMA

O arranjo do programa está diretamente ligado com a disposição das peças edificadas no terreno. Na base do conjunto (térreo inferior e térreo superior) encontram-se as funções coletivas, as atividades que por vezes recebem colaboradores ou público externo. Estes espaços estão organizados e articulados pela Praça de Estar, marcada ainda pela presença do auditório. As funções administrativas e o corpo diretivo estão concentrados nos pavimentos superiores. Nos pavimentos inferiores está localizada a garagem e as atividades administrativas relacionadas à serviços e manutenção predial.

Plantas (1) subsolo 1; (2) subsolo 2; térreo inferior (3); térreo superior (4); pav. tipo 1 (5); pav. tipo 2 (6).

OS ESCRITÓRIOS: MODULARIDADE E FLEXIBILIDADE

O projeto dos espaços de trabalho admite alterações de arranjos, tanto para os espaços, quanto para os componentes de instalações prediais e de infraestrutura – piso elevado, forro e ausência de pilares no meio dos pavimentos. A área disponível para os escritórios é, realmente, livre.

ARTICULAÇÃO, CIRCULAÇÃO E INFRAESTRUTURA

Para conectar todos os setores, criou-se uma estrutura periférica dupla – dois castelos de circulação vertical, infraestruturas e apoios diversos – com múltiplas possibilidades de ligação: escadas, varandas e elevadores coletivos ou privativos promovem a comunicação entre os diversos espaços. A circulação incorpora no desenho do percurso cotidiano o vazio central, acentuando sua presença. Todas as redes de infraestrutura se distribuem para o conjunto a partir de lajes com instalações (forros e pisos elevados) e dutos verticais especializados (shafts).

ACABAMENTO E EXPRESSÃO ARQUITETÔNICA

A expressão arquitetônica do conjunto arquitetônico proposto está estreitamente vinculada às decisões de projeto que concorrem no sentido de proporcionar uma obra organizada e eficiente com redução estratégica das ações construtivas. As estruturas serão tratadas e permanecerão aparentes, evidenciando-se a plasticidade do aço e concreto. Os painéis metálicos quebra-sóis garantem a integridade do conjunto. Em linhas gerais o edifício contrastará a cor natural dos materiais utilizados, o branco da estrutura metálica, o azul do céu e o verde da paisagem envoltória.

Fotografia: Nelson Kon

O conjunto edificado, com o térreo aberto permitirá visuais alongadas, sublinhando a possibilidade de extensão do chão público sem comprometer o gabarito que resguarda o céu de Brasília e que estará presente no grande espaço central conformado. Finalmente, a delicada curva do castelo de serviços na face norte, além de ceder parte do terreno para cidade marca a singularidade desta construção, nem pretensamente palácio nem isolada, mas superfície convergente e multiplicadora da urbe, sua história, sua vida.

Fotografias: Pedro Kok


Brasília 60 anos (Texto escrito para o site do CAU BR, 2020), por Alvaro Puntoni

Voltei a Brasília depois de quase 25 anos sem ir1, em 2007, a convite de um seminário na UnB. Me lembro que no primeiro dia após jantarmos, resolvemos caminhar pelo meio das superquadras desfrutando destes espaços intermediários entre as lâminas habitacionais suspensas do chão. A ideia de estar na “cidade rodoviária” e estar ouvindo o trilar contínuo dos grilos e o silêncio sentido era uma sensação realmente encantadora. Pensamos, num momento de insanidade, de irmos assim caminhando nestes bosques urbanos sucessivos até o hotel que ficava no setor hoteleiro, mas resolvemos depois de algum tempo caminhando livremente pelos térreos abertos, ruas e jardins, pegar um táxi.

Esta ideia de um chão público, a “superfície diferenciada” da nova capital, conforme descrição do próprio Lucio Costa, já havíamos sublinhado em um concurso para a sede do IPHAN em 2006, quando propusemos um edifício que pairava sobre este chão do Cerrado. A este primeiro ensaio de uma arquitetura possível em Brasília seguiram outros, todos frutos de concursos públicos promovidos pelo IAB.2

Nos parecia um sonho impossível e distante, como arquitetos de São Paulo, termos a possibilidade de fazer um edifício em Brasília e participar do diálogo, a coexistência de diferentes lógicas. Poder contribuir com uma frase a mais no livro que é esta cidade que nos encanta.

Em 2007 nosso desenho para a sede da CAPES3 continha esta mesma visão de um chão liberado com serviços instalados em estruturas laterais de concreto que suportavam as estruturas metálicas passantes dos espaços de trabalho. O mesmo conceito que utilizamos em 2008 no concurso (promovido pelo IAB DF) para o SEBRAE.

A sede do SEBRAE Nacional foi uma experiência incrível para todos nós. Primeiro por representar a realização deste sonho de construir em Brasília. Depois pela oportunidade que tivemos durante a obra de visitar por 52 vezes o canteiro e, consequentemente, estarmos em Brasília neste período de 18 meses e poder conhecer melhor a cidade e seus habitantes.

Procuramos neste projeto fazer uma arquitetura que se ajustasse e se conciliasse ao máximo com Brasília em todos os seus aspectos históricos, ambientais, culturais e urbanos. Apesar de todas as dificuldades que tivemos no processo do projeto à obra, de convencimento (dos clientes, empreiteira e, até mesmo, o poder público) e, depois, na apropriação da obra, sentimos que mesmo com todos os desaforos e magoas o prédio vai resistindo ao tempo, passados agora 10 anos da sua inauguração. Desta experiência ficam os amigos que fizemos e um prédio austero inserido na paisagem e conciliado com a urbe “costiana”.

Despois ainda tivemos a oportunidade de participar de outros concursos: a sede do CAU IAB4 em 2016, quando retomamos as ideias ensaiadas na sede do IPHAN 10 anos atrás, o Centro Educacional Crixá-DF em 20185 e a Arena Brasília em 20196.

Mas, destes projetos recentes, destacamos o Concurso Internacional para a Orla Livre do Paranoá7. Nesta participação fizemos como uma declaração de amor por esta cidade tão querida para nossa arquitetura e cara para nossa existência como brasileiros. Além dos 80 faróis que balizavam a Orla a cada quilometro, lembrando da sua existência durante a noite, gostávamos da proposta de um banco, um equipamento urbano, pensado como um edifício, que teria 80 km de extensão, que submergia e voltava a aparecer, organizando a ciclovia e o passeio de pedestre, além de ser a luminária horizontal deste plano de mobilidade ativa que circunvalaria a lago. Neste banco estariam impressos aleatoriamente páginas de livros, como por exemplo o do Lucio Costa, e um usuário poderia ir assim, caminhando e sentando, descobrindo e desfrutando partes destes livros, que fariam do estar urbano uma descoberta cotidiana.

Como devem ser as cidades históricas: uma descoberta nova a cada dia.

Como penso ser Brasília agora.

1 – Minha última ida a Brasília havia sido em 1991 por ocasião da premiação do Concurso do Pavilhão de Sevilha no Itamaraty.
2 – Na realidade nosso primeiro concurso em Brasília foi para a sede do CONFEA em 1996, em associação com Ângelo Bucci.
3 – Realizado em parceria com Luciano Margotto. Neste concurso obtivemos uma menção honrosa.
4 – Neste concurso obtivemos o quinto lugar.
5 – Neste concurso obtivemos o terceiro lugar.
6 – Em associação com MRGB arquitetos;
7 – Realizado em 2018, associado aos escritórios Burgos&Garrido (Espanha), Arquipélago, Eduardo Gianni e Ornaghi Paisagismo, quando obtivemos uma menção honrosa.


Sobre o projeto: Entrevista exclusiva para MDC.

por gruposp (gSP)

MDC – Como você contextualiza essa obra no conjunto de toda a sua produção?

gSP – Sem dúvida é uma das nossas obras mais importantes. Por sua escala, por seu programa institucional e público e por estar em Brasília, o que é um sonho para nós arquitetos: ter uma obra em Brasília.

MDC – Como foi o mecanismo de contratação do projeto?

gSP – Foi por meio de um concurso público organizado pelo IAB-DF em 2008. O concurso foi realizado em duas etapas. Na primeira etapa eram entregues 6 pranchas A3, todas previamente diagramadas pelo termo de referência do concurso, o que é interessante por equalizar as propostas e facilitar a comparação. A segunda fase teve três participantes e cada proposta deveria ser apresentada em 8 pranchas A0 com um modelo. O coordenador deste concurso foi o arquiteto Haroldo Pinheiro que organizou de forma precisa e rigorosa.

MDC – Como foi a fase de concepção do projeto? Houve grandes inflexões conceituais? Você destacaria algum momento significativo do processo?

gSP – Este projeto – realizado pelo gruposp arquitetos em associação com o arquiteto Luciano Margotto –culmina uma genealogia de projetos iniciada em 2004 com o Museu do Ouro em Sabará, passando pela Casa do Querosene, pela Nova Sede do IPHAN em Brasília, além do projeto para Sede da CAPES em Brasília, Habitação Social em Manaus e os primeiros estudos para o Edifício Simpatia.

Nestes projetos a ideia principal foi de concentrar todos os serviços em faixas infraestruturais de modo a permitir a liberação de vazios amparados para a vivência. Estas faixas são simultaneamente os componentes estruturais que se constituem em características expressivas e protagonistas da arquitetura proposta.

Outro aspecto relevante é a manutenção da leitura do sítio original a partir de uma implantação que não obstrua a possibilidade de situar-se no território, permitindo a visualização da cidade a partir dos espaços internos.

O terreno situa-se junto ao eixo rodoviário-habitacional, próximo à área das embaixadas no lado sul da cidade de Brasília, na continuidade do eixo comercial da superquadra, apresentando esta declividade típica de Brasília, situada junto ao vale que se lança em direção ao Lago Paranoá. O conceito do projeto era manter livre o chão de Brasília como uma continuidade deste solo público, a partir das superquadras habitacionais. Teríamos dois térreos: um superior e outro inferior onde situam-se os programas mais coletivos e abertos ao público externo do SEBRAE.

No térreo superior temos apenas os espaços de acolhimento e acessos. Dois espelhos d’água garantem um microclima interno mais agradável, importante em uma cidade como Brasília. Importante destacar a questão climática. Como se sabe temos um clima que permite pensar e fazer uma arquitetura mais aberta. No caso do SEBRAE os elevadores e escadas estão sempre relacionados com os espaços externos, reforçando aspectos característicos da arquitetura brasileira.

Finalmente nos dois últimos pavimentos – uma estrutura aérea metálica que paira sobre este chão e conforma um pátio interno central – estão os escritórios, ocupando planos abertos e flexíveis, conformado pela estrutura metálica que se vincula com os castelos infraestruturais de concreto.

Nos cortes é possível compreender a relação do edifício com a topografia que permite a organização do programa. Além disto destacamos alguns elementos estruturais: as varandas são lajes atirantadas em vigas que vencem o vão de 36 metros. Isto foi realizado para evitar colunas que interferissem nos programas do térreo inferior, como o auditório, por exemplo. Outro elemento importante é o que chamamos de “nuvem”: uma estrutura de aço e vidro que abriga a circulação de pedestres no térreo do edifício.

Outra ideia a ser destacada é a concepção da sequência construtiva. Temos uma estrutura de concreto até o nível dos escritórios e depois uma construção por montagem a partir deste nível quando começa a estrutura de aço. Imaginou-se uma sequência construtiva desta forma: primeiro todos os elementos de concreto, em seguida a estrutura metálica e as lajes, e, finalmente, os fechamentos metálicos e vidros.

Apesar de claramente possível, em função do tempo de 18 meses para execução, ela foi feita de maneira simultânea. A obra foi bem realizada apesar dos percalços de um processo que levou três anos entre o concurso e a conclusão da obra.

MDC – Nas etapas de desenvolvimento executivo e elaboração de projetos de engenharia houve participação ativa dos autores? Houve variações de projeto decorrentes da interlocução com esses outros atores que modificaram as soluções originais? Se sim, pode comentar as mais importantes?

gSP – Os projetos de arquitetura são marcados pela interlocução entre as múltiplas disciplinas que, no final, viabilizam a realização do projeto e a execução da obra. Nesse sentido, claro que ocorreram ajustes ao longo do processo, desde aspectos legais relacionado a aprovação do projeto pelo GDF (Governo do Distrito Federal) até questões específicas de instalações gerais. Mas é o projeto estrutural que mais solicitou ajustes, apesar de termos trabalhados com os engenheiros (Zaven & Fruchtengarten) desde a concepção do projeto na primeira e segunda etapas do concurso. Mas é interessante destacar que a obra mantém muita semelhança em relação ao projeto apresentado na segunda etapa do concurso.

MDC – Os autores dos projetos tiveram participação no processo de construção/implementação da obra? Se sim, quais os momentos decisivos dessa participação?

gSP – Por solicitação do SEBRAE prestamos um serviço de acompanhamento da obra (não se tratou de uma fiscalização, para a qual foi contratado um engenheiro, mas uma assessoria técnica à realização da obra). Realizamos 52 visitas à obra (que compreende o período de março de 2009 até novembro de 2010). As visitas eram quase que quinzenais e organizadas por pautas previamente estabelecidas a partir dos relatórios elaborados pela arquitetura e a partir de demandas da fiscalização ou da própria construtora.

MDC – Você destacaria algum fato relevante da vida do edifício/espaço livre após a sua construção?

gSP – Os relatos (e agradecimentos) dos usuários nas visitas realizadas após a ocupação do edifício sempre foram o que mais nos emocionou. Por exemplo, a possibilidade de funcionários que antes não se encontravam ou se viam, agora podiam ter esta experiência, promovida pela arquitetura.

Outra história legal é que o interesse de visitação do edifício, sobretudo por parte de arquitetos e estudantes de arquitetura, fez com que o SEBRAE criasse um programa de visita guiada, com uma publicação e criação e uma vaga de trabalho para esta finalidade.

MDC – Se esse mesmo problema de projeto chegasse hoje a suas mãos, faria algo diferente?

gSP – Provavelmente sim, afinal de contas como nos lembra Heráclito, não somos os mesmos arquitetos depois de 15 anos. Na realidade, esta questão do tempo da obra – os tempos da arquitetura – faz os arquitetos continuamente repensarem o que estão fazendo. Afinal de contas, quando fica pronta a obra, diz respeito a uma ideia de outro momento passado, como uma espécie de cápsula do tempo. Se não temos esta noção, dificilmente podemos fazer as revisões críticas necessárias para seguirmos adiante, contribuindo para o avanço disciplinar de nossa atividade.

MDC – Como você contextualiza essa obra no panorama da arquitetura contemporânea do seu país?

gSP – É uma obra representativa por advir de um concurso público bem-sucedido. Houve também algumas premiações, mas estas são consequências de um trabalho bem realizado.


projeto executivo


PARTE 1:
CONCURSO ETAPAS 1 E 2

25 pranchas (pdf).
40,27mb


PARTE 2:
ANTEPROJETO

12 pranchas (pdf).
10,67mb


PARTE 3:
PROJETO LEGAL

12 pranchas (pdf).
9,47mb


PARTE 4.1:
PROJETO EXECUTIVO – 01
PLANTAS E IMPLANTAÇÃO + CORTES E ELEVAÇÕES

71 pranchas (pdf).
61,48mb


PARTE 4.2:
PROJETO EXECUTIVO – 02
PISO, FORRO E ELÉTRICA + DETALHES

23 pranchas (pdf).
35,05mb


PARTE 4.3:
PROJETO EXECUTIVO – 03
ÁREAS MOLHADAS, AMPLIAÇÕES,
ESQUADRIAS, AUDITÓRIO E OUTROS


96 pranchas (pdf).
83,89mb


PARTE 5:
COMUNICAÇÃO VISUAL

37 pranchas (pdf).
27,61mb


localização e ficha técnica do projeto

Local: Brasília, DF
Ano de projeto: 2008
Ano de execução e conclusão da obra: 2009 e 2010
Área do Terreno: 10.000,00 m²
Área Construção: 25.000,00 m²
Concurso Nacional: 1º Prêmio
Arquitetura, Comunicação Visual, Ambientação e Mobiliário: Alvaro Puntoni, João Sodré, Jonathan Davies, Luciano Margotto.
Colaboração: Amanda Spadotto, Cristina Tosta, Camila Obniski, Daniela Pochetto, Fabiana Cyon, Flavio Castro, João Carlos Yamamoto, José Paulo Gouvêa, Juliana Braga, Luis Cláudio Dias, Roberta Cevada, André Nunes, Julia Valiengo, Julia Caio, Isabel Nassif, Rafael Murolo, Rafael Neves, Raphael Souza


Estrutura: Jorge Zaven Kurkdjian, Julio Fruchtengarten
Paisagismo: Fernando Magalhães Chacel, Sidney Linhares
Luminotécnico: Ricardo Heder
Hidráulica / Elétrica: Wang Mou Suong, Ulisses Tavano, Roberto Chendes
Climatização: Eizo Kosai, Thermoplan Engenharia Térmica Ltda.
Eco-eficiência: Luis Carlos Chichierchio, Juliette Haase de Azevedo
Automação / Segurança predial / Áudio e Vídeo: Roberto Luigi Bettoni, Aires Craveiro, Victor Vainer
Transporte Vertical: Moacyr Motta
Impermeabilização: Virginia Pezzolo
Contenções: Engedat Consultoria e Projeto Ltda
Caixilhos: Andre Mehes, Dinaflex Ltda.
Orçamento: Mauro Zaidan, Nova Engenharia Ltda.
Painel Artístico: Ralph Gehre
Maquete: Gaú Manzi, Fabio Gionco, José Paulo Gouvêa
Construção: Termoeste SA Construções e Instalações

Fotos: Nelson Kon e Pedro Kok
Contato: contato@gruposp.arq.br


galeria


colaboração editorial

Renan Maia

deseja citar esse post?

PUNTONI, Alvaro. SODRÉ, João. DAVIES, Jonathan. MARGOTTO, Luciano. “Sede SEBRAE NACIONAL”. MDC: Mínimo Denominador Comum, Belo Horizonte, s.n., ago-2023. Disponível em http://www.mdc.arq.br/2023/08/25/sede-sebrae-nacional/ . Acesso em: [incluir data do acesso].


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Centro de Referência Quebradeiras de Babaçu

por Estudio Flume
10 minutos

Centro de Referência Quebradeiras de Babaçu (texto fornecido pelos autores)


O coco babaçu é a maior atividade extrativista vegetal não madeireira do país e também uma fonte de renda para muitas famílias, apesar de seu declínio constante ao longo dos anos, influenciado principalmente por conflitos territoriais.

Fotografia: Maíra Acayaba

Os Estados do Maranhão, Piauí e Tocantins concentram as maiores extensões de matas onde predominam os babaçus. O principal derivado, o óleo, é extraído das amêndoas, que possui valor comercial para a indústria, entre outros. A extração das amêndoas (de 3 a 5 por coco), é realizada manualmente, de forma caseira e tradicional. Segundo dados da CONAB (Companhia Nacional de Abastecimento) de 2021, o Brasil produziu em 2020, 47.707 toneladas de amêndoas de coco babaçu, sendo o estado do Maranhão responsável por 92,9% da produção. É parte do sustento de grande parcela da população interiorana, extraída, quase exclusivamente, pelas mulheres: as quebradeiras de coco. Estima-se mais de 300 mil quebradeiras espalhadas pelas regiões da Mata dos Cocais. O ofício é passado de geração a geração, desde a coleta dentro da mata à quebra do coco para retirada das amêndoas. As quebradeiras de coco são oficialmente reconhecidas como um dos 28 povos e comunidades tradicionais brasileiras.

Implantação Metropolitana

Porém, o reconhecimento e a garantia, por lei, pelo menos em alguns municípios, ao acesso às terras para a colheita dos cocos são constantemente reprimidos pelos donos dos latifúndios, seja dificultando o acesso, como derrubando as palmeiras para formação de pastos. E a busca pela sobrevivência das quebradeiras se dá por estratégias como o agrupamento das mulheres, através de associações, fortalecendo a representatividade junto às instituições, bem como a dignificação do trabalho, com a tentativa de se agregar valor ao produto através de aplicações alternativas. Além das amêndoas e o seu valor comercial, utiliza-se a farinha do mesocarpo para pães, biscoitos, bolos, e outros alimentos; a casca do coco, como carvão; a própria fumaça, como repelente de insetos; a folha da palmeira, como trançado para cestas, coberturas e esteiras; o palmito, comestível; exemplos que despertam o interesse como objeto de estudos e pesquisa científica na área farmacêutica e na indústria alimentícia.

A região apresenta ainda muitas residências unifamiliares em taipa. O povoado se localiza a 35 km de distância do centro urbano mais próximo, a cidade de Vitória do Mearim. Dependendo da estação do ano, o deslocamento é necessariamente mediante transporte fluvial, uma vez que o povoado de Sumaúma, inserido na bacia hidrográfica do Mearim1, se inunda com as águas do rio Grajaú e o do Igarapé Ipixuna que desaguam no rio Mearim, inviabilizando o transporte por terra durante um período de aproximadamente 3 meses.

Localização e águas

Com vista às condições geográficas, o difícil acesso com materiais construtivos e a leitura das técnicas e recursos próprios da região, optou-se pela utilização do bloco de terra comprimida, composto por solo argiloso, água e uma pequena proporção de cimento, compactado manualmente com prensa mecânica, significando assim em uma releitura da casa de adobe, com manutenção reduzida para o longo prazo da estrutura construída. Esta estrutura autoportante define os espaços de trabalho e permanência.

Fotografia: Maíra Acayaba + Planta de Layout

Uma segunda estrutura independente, de sustentação do telhado, está definida por pilares, vigas e tesouras de madeira local, de recurso florestal autorizado pelo IBAMA. Esta cobertura dupla, oferece melhores condições de conforto térmico, garantindo áreas e construções permanentemente sombreadas.

Fotografia: Maíra Acayaba + Cortes e Elevações

Durante a obra, primeiramente se realizaram as fundações, em segunda instância se realizou a construção do telhado, proporcionando assim uma área protegida no canteiro de obra para fabricação dos tijolos no próprio terreno durante o período de chuvas, para finalmente construir as áreas de trabalho com o material produzido no próprio local. O telhado também incorpora calhas para captação de água de chuva, e a construção como um todo trabalha com sistemas de tratamento de esgoto e águas cinzas mediante a incorporação de fossa séptica biodigestora e círculo de bananeiras. Todas estas técnicas foram discutidas e difundidas na comunidade, incentivando sua replicabilidade a fim de conseguir um impacto ambiental maior que o atingido pelo projeto em si.

Isométrica Explodida

Neste sentido, o projeto do Centro de referência das Quebradeiras de Babaçu significa uma inovação no cotidiano do trabalho do grupo, uma vez que, para o desenvolvimento do projeto, se trabalhou conjuntamente com o grupo numa série de oficinas de desenho coletivo, onde a equipe de Estúdio Flume aprendeu sobre o processo produtivo do grupo, para assim juntos desenhar espaços que buscam a otimização dos usos, onde os diversos programas e momentos das atividades produtivas se organizam mediante uma circulação dinâmica e fluída.

Fotografia: Noelia Monteiro

Nessas oficinas de desenho coletivo, a escuta e a partilha são o primeiro passo para definição de diagramas e fluxogramas dos processos de produção, uma tradução espacial e temporal das técnicas ancestrais de trabalho. As maquetes de processo são uma ferramenta chave para o diálogo e revisão de projeto, assim como para o processo de construção, onde o dispositivo guia algumas das orientações gerais. A equipe de obra incorpora saberes e modos de fazer, que também significam revisões de projeto durante o processo construtivo. Ao assumir diversas formas de nos aproximar às soluções, seja mediante imagens, diálogos e especulações para a produção dos espaços, organizando os usos e as hierarquias deles no conjunto construído, a arquitetura finalmente funciona como um meio para proporcionar igualdade e proporcionar liberdade no futuro do projeto e na sua flexibilidade para se adaptar a novas demandas.

1 – Universidade Estadual do Maranhão e Núcleo geoambiental, «Regiões Hidrográficas do Maranhão», 2009. https://www.nugeo.uema.br/?page_id=233.


Sobre o projeto: Entrevista exclusiva para MDC.

por Noelia Monteiro (N.M.)

MDC – Como você contextualiza essa obra no conjunto de toda a sua produção?

N.M. – O Centro de Referência das Quebradeiras de Babaçu consolidou um método de aproximação ao projeto em desenvolvimento junto à comunidade. Desde a decisão do programa e as atividades que poderia abrigar até o fluxo de circulação interno e como cada parte faz sentido no todo. Elementos fixos próprios do mobiliário foram desenhados nas oficinas de projeto junto às mulheres pensando na própria ergonomia e a forma tradicional de trabalhar.

MDC – Como foi o mecanismo de contratação do projeto?

N.M. – Já tínhamos realizado diversos projetos e assessorias com grupos de quebradeiras no interior do Maranhão, portanto a ideia de dedicar um espaço para o encontro, a troca e a produção foi se consolidando com os anos, sendo assim uma contratação direta.

MDC – Como foi a fase de concepção do projeto? Houve grandes inflexões conceituais? Você destacaria algum momento significativo do processo?

N.M. – Inicialmente o projeto tinha sido pensado para outro terreno, de proporções quadradas, e em outra comunidade. Quando o grupo conseguiu adquirir o terreno do atual projeto, as proporções de um terreno estreito e profundo nos levaram para um novo partido, trabalhando com uma grande cobertura retilínea e modular, e um único corredor que distribuísse em forma de pente para os diferentes espaços do programa.

MDC – Nas etapas de desenvolvimento executivo e elaboração de projetos de engenharia houve participação ativa dos autores? Houve variações de projeto decorrentes da interlocução com esses outros atores que modificaram as soluções originais? Se sim, pode comentar as mais importantes?

N.M. – Na etapa do executivo, o projeto de estruturas trouxe variações ao projeto definido no anteprojeto, de modo a simplificá-lo uma vez que o material predominante da obra, que seria o tijolo de solo compactado, gerava muitas dúvidas para os engenheiros envolvidos de como se comportaria no decorrer do tempo.

MDC – Os autores dos projetos tiveram participação no processo de construção/implementação da obra? Se sim, quais os momentos decisivos dessa participação?

N.M. – O escritório realizou o gerenciamento e administração da obra. Houve um momento chave na organização do cronograma de obra, que foi o de identificar que devido ao período de intensas chuvas que a construção atravessaria, seria necessário pensar a ordem do sistema construtivo de um modo diferente. Assim, após realizar as fundações, foi instalada a estrutura de madeira que daria sustentação à cobertura principal. Com a cobertura pronta, iniciou-se a fabricação dos tijolos in-loco para finalmente construir o projeto. Desta forma, foi possível dar continuidade a obra, mesmo no período de chuvas.

MDC – Você destacaria algum fato relevante da vida do edifício/espaço livre após a sua construção?

N.M. – Mesmo com caráter de projeto dedicado a produção de alimentos e geração de renda, a possibilidade de construir num povoado sem presença de equipamentos culturais nem espaços públicos, como praças com brinquedos, adicionou outras camadas ao projeto, como a possibilidade de se tornar também o espaço de encontro, não só das quebradeiras, como também de filhos e netos.

MDC – Se esse mesmo problema de projeto chegasse hoje a suas mãos, faria algo diferente?

N.M. – Pensando nos programas não previstos, como o uso por parte de crianças e adolescentes como lugar de encontro, receber a demanda do projeto no atual contexto poderia ser trabalhada em conjunto com o grupo, destinando setores e espaços específicos do terreno para o lugar de brincar. Não para propor um controle sobre o encontro da comunidade, mas sim para promover uma convivência com atividades que se relacionam com um processo controlado da produção de alimentos. Esta convivência poderia ser construída desde a concepção do projeto para que pudesse ser amadurecida na apropriação e uso da obra construída.

MDC – Como você contextualiza essa obra no panorama da arquitetura contemporânea do seu país?

N.M. – O Centro de Referência das Quebradeiras de Babaçu representa a realização de um projeto concebido desde as ideias preliminares junto com a comunidade. Ao mesmo tempo faz uma releitura dos materiais utilizados nas construções locais e se propõe a fortalecer a presença de um grupo tradicional que atravessa conflitos de território. Neste contexto, entendemos que assim como no Brasil, a nível regional na América Latina é possível criar uma rede de projetos com foco no fortalecimento de comunidades tradicionais.

MDC – Há algo relativo ao projeto e ao processo que gostaria de acrescentar e que não foi contemplado pelas perguntas anteriores?

N.M. – A possibilidade de acompanhar a obra de perto permitiu incorporar saberes locais do empreiteiro, do carpinteiro, do serralheiro, que foram aprimorando as ideias defendidas no papel. O excedente de material produzido como tijolos, ou mesmo madeira utilizada durante a obra, deram lugar à produção de bancos para o descanso e o encontro em diferentes pontos do projeto. A concretização destes detalhes só foi possível pela frequência e presença no canteiro de obra.


projeto executivo


EXECUTIVO COMPLETO

12 pranchas (pdf).
5,30mb


COMPLEMENTARES COMPLETO

10 pranchas (pdf).
3,64mb


localização e ficha técnica do projeto

Local: Sumaúma, Vitória do Mearim, MA
Ano de projeto: 2021
Ano de execução e conclusão da obra: 2022
Autores: Noelia Monteiro e Christian Teshirogi
Colaboração: Marina Lickel

Arquitetura: Estudio Flume
Luminotécnico: Ana Lúcia Hizo
Construtor: Miguel Noleto Machado

Fotos: Maíra Acayaba e Noelia Monteiro
Contato: info@estudioflume.com


galeria


colaboração editorial

Renan Maia

deseja citar esse post?

MONTEIRO, Noelia. TESHIROGI, Christian. “Centro de Referência Quebradeiras de Babaçu”. MDC: Mínimo Denominador Comum, Belo Horizonte, s.n., ago-2023. Disponível em http://www.mdc.arq.br/2023/08/11/centro-de-referencia-quebradeiras-de-babacu/ . Acesso em: [incluir data do acesso].


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Casa do Mel

por Estudio Flume
10 minutos

Casa do Mel (texto fornecido pelos autores)

O projeto Casa do Mel propõe atender dois objetivos do território onde se insere. O ambiental, de preservar as áreas ainda não ocupadas e de restaurar as áreas já degradadas. E o socioeconômico, de alimentar e gerar renda para a população local.

Fotografia: Christian Teshirogi

A construção realizada para a Associação dos Apicultores de Canaã dos Carajás (AACC), chamada pelas associadas e associados “Casa do Mel”, foi concluída em 2018, teve como objetivo sediar o processo de beneficiamento do mel, coletado pelos seus cinquenta e três associados – pequenos produtores rurais locais. Localiza-se no município de Canaã dos Carajás, no sudeste do estado do Pará, na Amazônia legal brasileira, cidade que, como tantas outras do Norte brasileiro, emergiu a partir de assentamentos agrícolas. Este, em particular, originou-se do Projeto de Assentamento Carajás, implementado em 1982 pelo Grupo Executivo das Terras do Araguaia e Tocantins (GETAT), do Governo Federal e, cujo nome adotado advêm da sua proximidade com a Serra dos Carajás, território originalmente povoado pelos grupos indígenas Karajá e Kayapó.

Fotografia: Christian Teshirogi

Desde a década de 1960, a Serra dos Carajás, assim como seu entorno, tem atravessado uma profunda modificação paisagística devido aos grandes projetos de mineração instalados em seu território, atualmente densamente povoado. Grandes centros urbanos se instalaram nas proximidades do acidente geográfico, como resultado da exploração da jazida de minério de ferro, identificada por uma equipe de geólogos em 1964, processo descrito pelo engenheiro Newton Pereira de Rezende no livro “Carajás: memórias da descoberta”, publicado em 2009, onde faz menção ao “distrito ferrífero da Serra de Carajás”.1

Sobre a riqueza da flora e fauna da região, o plano de manejo florestal emitido por Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade descreve: “Inserindo-se no Centro de Endemismos Xingu-Tocantins, a Floresta Nacional de Carajás se caracteriza como uma área de elevada biodiversidade e existência de diversas espécies endêmicas da flora e da fauna, especialmente de aves, répteis, anfíbios e plantas associadas aos ecossistemas abertos sobre canga.”2

O território onde se insere este projeto é marcado por duas urgências, de um lado a urgência de preservar as áreas ainda não degradadas e/ou ocupadas e de restaurar as áreas já degradadas, como os pastos de criação extensiva de gado mal manejados. De outro, a urgência de alimentar e gerar renda para a população local. O objetivo do projeto foi responder a essas duas urgências de forma autossustentável através do apoio à produção de mel, integrando a dimensão ambiental e social.

Fotografia: Christian Teshirogi

Produzir mel pode acelerar a restauração de áreas degradadas e conservar a biodiversidade local – visto que as e os apicultores são diretamente interessados na disponibilidade de alimento para suas abelhas e, portanto, na presença de áreas protegidas. Além disso, a Casa do Mel permite agregar valor ao mel produzido pela comunidade e gera oportunidade de aumentar a produção individual e a quantidade de membros da associação diretamente envolvidos na produção.

Isométrica explodida + Planta layout

Neste contexto, no desenvolvimento de projetos arquitetônicos vinculados às soluções socioambientais em áreas rurais, buscando o fortalecimento de oportunidades na economia local e a geração de renda, com foco na segurança alimentar, visualizamos três escalas de aproximação para abordar a proposta do projeto e construção da Casa do Mel.

1- Tecnologia / detalhe: o estudo de soluções técnicas para construir com o material fabricado e comercializado no entorno imediato, no centro urbano mais próximo. Em áreas rurais, afastadas dos centros urbanos, optamos por criar estruturas resilientes no meio no qual se inserem que não demandem alto grau de manutenção.

2- Arquitetura / espaço: o entendimento espacial do ambiente de trabalho no caráter de cooperativas, como alternativa às condições adversas e de vulnerabilidade social.

3- Território / sistema: o fortalecimento dos sistemas urbanos constituídos por povoados de pequeno e médio porte que conformam uma rede que se fortalece regionalmente.

Em visita ao sítio, realizada em 2017, observamos que, no terreno em declive com aproximadamente sete metros de desnível entre frente e fundo, se destacava o afloramento rochoso logo no acesso à área, originalmente parte integrante de uma fazenda, cercada por pastos, característicos da pecuária extensiva praticada nos latifúndios.

Implantação Metropolitana

Portanto, optamos pela suspensão da construção por pilotis, elevando a laje de piso e preservando o perfil natural do terreno e as rochas, garantindo a mínima movimentação de solo. A solução adotada, além de ser mais favorável do ponto de vista econômico, se apresenta principalmente mais favorável do ponto de vista ambiental por não alterar a topografia natural do terreno e respeitar o caminho das águas de chuva enquanto não impermeabiliza o solo, mantendo a área de absorção. Esta solução favoreceu, também, a circulação de ar entre a edificação e o solo, contribuindo para o conforto térmico, numa área onde predominam altas temperaturas, típicas da região norte do país.

Cortes B e D
Fotografia: Christian Teshirogi

1 – Rezende, N. Carajás: memórias da descoberta, Editora Gráfica Stamppa, 2009, p. 7.
2 – CMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). Plano de Manejo Flona Carajás. Volume II. 2016, p. 16.


Sobre o projeto: Entrevista exclusiva para MDC.

por Noelia Monteiro (N.M.)

MDC – Como você contextualiza essa obra no conjunto de toda a sua produção?

N.M. – A Casa do Mel foi uma obra importante no conjunto da produção do escritório porque foi a primeira na qual conseguimos trabalhar em todas as fases do projeto com o suporte de projetos complementares para estrutura, hidráulica, energia, etc. Isso proporcionou um tempo adequado de amadurecimento das fases do projeto e aprimoramento do material produzido. Consequentemente reuniões com a equipe envolvida para o entendimento do que seria construído.

MDC – Como foi o mecanismo de contratação do projeto?

N.M. – O escritório foi solicitado a realizar uma visita para assessoria e trabalho sobre uma planta de lay-out que a associação de apicultores tinha adquirido como doação de autoridades locais. Após apresentarmos ideias de como proporcionar um ambiente com conforto térmico, fomos contratados para desenvolver o projeto. No momento da contratação da obra, houve um processo de licitação por convite, no qual as experiências prévias de construção em áreas rurais e com comunidades, deram suporte na escolha do escritório para a fase da construção.

MDC – Como foi a fase de concepção do projeto? Houve grandes inflexões conceituais? Você destacaria algum momento significativo do processo?

N.M. – A associação de apicultores inicialmente tinha colocado como condição do projeto uma sala de reuniões e assembleias periódicas. Na escassez de recurso para construção do espaço, quando consultamos ao grupo sobre a periodicidade de uso do espaço, nos informaram que seria utilizado uma vez por mês. A partir desta resposta, surgiu a ideia de deslocar o volume de áreas de serviço em relação ao volume de área produtiva, e cobrir todo o conjunto com um telhado suspenso em relação a laje, gerando esta área de reunião no espaço entre ambos volumes.

MDC – Nas etapas de desenvolvimento executivo e elaboração de projetos de engenharia houve participação ativa dos autores? Houve variações de projeto decorrentes da interlocução com esses outros atores que modificaram as soluções originais? Se sim, pode comentar as mais importantes?

N.M. – Inicialmente o projeto previa as quatro fachadas com elemento vazado, ou cobogó pré-fabricado que conseguimos adquirir nas proximidades do terreno de implantação do projeto. Quando o projeto passou pela fase de aprovação da vigilância sanitária, a condição para aprovação foi de trabalhar apenas com janelas acima de 1,80 m de altura. A ideia de um ambiente ventilado permanentemente só foi possível de viabilizar na copa e refeitório.

MDC – Os autores dos projetos tiveram participação no processo de construção/implementação da obra? Se sim, quais os momentos decisivos dessa participação?

N.M. – Realizamos o gerenciamento e administração da obra para conseguir viabilizar o projeto da forma que tinha sido concebido. Após várias tentativas de contratação de empreiteiras da região, concluímos na necessidade de nos envolver no processo de construção, uma vez que os projetos costumam ser muito pequenos e em locais de difícil acesso para as empreiteiras se interessarem pelo serviço. Ao mesmo tempo, a necessidade de seguir as especificações de um projeto executivo, inviabilizam que o serviço possa ser realizado por um construtor local sem treinamento na leitura do material.

MDC – Você destacaria algum fato relevante da vida do edifício/espaço livre após a sua construção?

N.M. – Um fato curioso que aconteceu após a obra estar pronta, foi que quando os apicultores começaram a utilizar o espaço, relataram que o local era completamente fresco e arejado. Essa constatação foi muito gratificante, já que ao iniciarmos o diálogo para desenvolvimento do projeto, o grupo tinha a expectativa de instalação de ar condicionado. Após reuniões com maquetes para discutir conceitos como cobertura dupla e ventilação cruzada, o grupo chegou à conclusão que com essas soluções arquitetônicas, o recurso necessário para um sistema de ar condicionado, poderia ser direcionado para outras finalidades do projeto. E uma consequente redução das despesas mensais da obra construída.

MDC – Se esse mesmo problema de projeto chegasse hoje a suas mãos, faria algo diferente?

N.M. – É difícil contextualizá-lo do momento no qual começou a ser concebido, entre 2016 e 2017. Ele é resultado do amadurecimento de várias experiências prévias entre os estados de Pará e Maranhão. Pensando nesses anos transcorridos, tal vez algo que poderia ter sido elaborado em conjunto com os apicultores, seria um projeto paisagístico para contenção dos fortes ventos, pelo projeto está implantado em uma área completamente descampada. Mesmo que sem recurso e contratação específica deste escopo, nos projetos subsequentes paisagem e arquitetura começaram a ser trabalhados como indissolúveis.

MDC – Como você contextualiza essa obra no panorama da arquitetura contemporânea do seu país?

N.M. – A Casa do Mel foi a primeira obra construída publicada de Estúdio Flume, inclusive fora do Brasil. Entendemos que isto tem a ver menos com elementos de desenho arquitetônico e mais com características próprias do alcance da arquitetura como disciplina capaz de transformar de alguma maneira a realidade e o cotidiano de um grupo de trabalhadores. Historicamente o lugar da arquitetura de caráter social tem se concentrado na produção de moradia, estender as possibilidades para o local de trabalho de quem normalmente não teria acesso a um espaço desenhado cuidadosamente desde a disciplina da arquitetura, tem aberto um leque de possibilidades e interesse, principalmente para os estudantes e novas gerações de arquitetos.

MDC – Há algo relativo ao projeto e ao processo que gostaria de acrescentar e que não foi contemplado pelas perguntas anteriores?

N.M. – Entender o projeto não só como um projeto acabado nele mesmo, e sim como parte de um sistema com alcance maior que o da própria obra de arquitetura e um fio condutor no processo de desenho. Nesses termos, o projeto da Casa do Mel tem uma função não mencionada previamente, na preservação da floresta nativa mediante o fortalecimento da cooperativa de apicultores numa região que já tem atravessado processos de desmatamento. A arquitetura só nela mesma tem um alcance finito, mas associada a um trabalho interdisciplinar com outras áreas de conhecimento potencializa seu alcance em termos de se posicionar como uma profissão que proporciona soluções ou minimamente não se alinhar à lógica de esgotamento de recursos naturais.


projeto executivo


EXECUTIVO COMPLETO

14 pranchas (pdf).
11,81mb


localização e ficha técnica do projeto

Local: Canaã dos Carajás – PA
Ano de projeto: 2017
Ano de execução e conclusão da obra: 2018
Área Construída: 240 m²
Autores: Noelia Monteiro e Christian Teshirogi
Colaboração: Júlia Marini e Nathalia Appel

Arquitetura: Estudio Flume
Estrutura: Megalos engenharia
Instalações Hidráulicas e Elétricas:
Ideale engenharia
Construtor: Miguel Noleto Machado

Fotos: Christian Teshirogi
Contato: info@estudioflume.com


galeria


colaboração editorial

Renan Maia

deseja citar esse post?

MONTEIRO, Noelia. TESHIROGI, Christian. “Casa do Mel”. MDC: Mínimo Denominador Comum, Belo Horizonte, s.n., ago-2023. Disponível em http://www.mdc.arq.br/2023/08/11/casa-do-mel/ . Acesso em: [incluir data do acesso].


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Ampliação da Casa Boaçava

Por UNA arquitetos / UNA MUNIZVIEGAS
24 minutos

Ampliação da Casa Boaçava (texto fornecido pelos autores)

O problema aqui era construir a ampliação de uma casa feita há 10 anos. A Casa Boaçava foi projetada em 2009 e inaugurada em 2012.


Fotografias (fase 1): Leonardo Finotti

Com os anos, alguns usos se intensificaram, outros se modificaram. As crianças cresceram. Surgiu a necessidade de um espaço para atividades relacionadas a oficinas de artes corporais, assim como parte da rotina de escritório dos moradores passou a ser realizada em casa.

Isométricas Casa Boaçava – fase 1 e 2

Em resposta a essas demandas, surgiu a oportunidade de compra do terreno vizinho. O projeto é a construção de uma praça que passa a ser o centro do conjunto, que articula novos usos aos existentes.

O volume que ocupava praticamente todo o lote, respeitando os recuos obrigatórios, ganhou um contraponto com o vazio exterior. São três frentes para essa praça, definidas pelas construções: a casa original com o bloco de concreto pigmentado e as duas alas do anexo. Novamente estabelece continuidade com a rua.

Plantas [1] térreo; [2] subsolo; [3] primeiro pavimento; [4] cobertura

Cortes longitudinais e transversais

O piso de madeira existente se estendeu para todos os espaços exteriores interligando também o jardim ao fundo, de onde se descortina a vista do vale do Pinheiros. A praça se completa com o horizonte. Habita-se a geografia se esquecendo do lote.


Fotografias: Leonardo Finotti

Em continuidade, no tempo, o novo volume é todo construído em planos de concreto aparente. Conexões e proteções são metálicas. A ideia é condensar os dois tempos da obra sem diferenciá-los, como se estivessem à espera de um novo complemento. Ao final, não saberemos o que foi feito antes, a casa, ou seu anexo. Poderiam ainda surgir mais intervenções, solução aberta.


Fotografias: Leonardo Finotti

A forma é de cidadela, um vilarejo, com torres, pontes, jardins suspensos, pátios rebaixados e praças cobertas.


A cidadela1 (por Carlos Alberto Maciel)

Diz-se que uma das principais contribuições de Vilanova Artigas à arquitetura brasileira teria sido a introdução da ideia de cidade no desenho da casa paulistana moderna. Daniele Pisani, em seu livro “A cidade é uma casa. A casa é uma cidade. Vilanova Artigas na história de um topos2, desvenda as possíveis origens dessa ideia que antecede Artigas, nos oferecendo um passeio de dois mil anos que passa por Leon Battista Alberti e Andrea Palladio, recua à Espanha dos Séculos VI e VII através do teólogo e arcebispo Isidoro de Sevilha, passa por autores do Século XIX como Ildefons Cerdà, retorna à modernidade europeia à época do Team X com Aldo van Eyck e outros e, em algum momento, identifica a presença do tema no Memorial para o concurso de Professor Titular na FAU-USP elaborado por Paulo Mendes da Rocha em 1998. Chegamos aqui a uma circunstância da história desse topos que nos interessa: a sua entrada no Século XXI. Contida na genealogia daquela máxima está outra, de menor extensão temporal, que conecta Artigas a Mendes da Rocha, e ambos a uma geração prolífica da arquitetura contemporânea que faz continuar aquilo que se conhece como Escola Paulista. Fazem parte dessa geração os arquitetos Cristiane Muniz e Fernando Viégas, formados na FAUUSP na década de 90 do Século passado. A Casa Boaçava em São Paulo foi projetada desde 2009 pelo Una Arquitetos sob sua coordenação3.

Para compreendermos melhor essa obra é preciso antes reconhecer os tempos de sua realização. A primeira Casa Boaçava foi projetada em 2009; sua ampliação, em 20184. O intervalo entre ambos informa a mudança: nas necessidades dos seus moradores; nos princípios que fundamentam as decisões dos arquitetos.

A casa de 2009 pode ser lida como herdeira direta do repertório teórico e projetual da Escola Paulista: eleva-se sobre poucos apoios promovendo uma integração radical entre interior e exterior e uma continuidade entre rua, jardim frontal, áreas de convivência e jardim com espaços de lazer; promove uma clara diferenciação entre espaços servidos e servidores, que orienta a própria imagem e ambiência dos espaços principais através do plano-volume que a um só tempo organiza linearmente os serviços, conforma parte da estrutura portante e conduz o olhar que atravessa o vazio dos espaços de convivência; oferece uma sombra qualificada, apenas delicadamente protegida pelas vidraças, que interpreta alguns dos melhores momentos da arquitetura paulista dos anos 60 e 70; por último, estabelece uma oposição entre o volume elevado, que se apresenta como uma construção geométrica e construtivamente precisa, e o desenho do chão, que reforça um sentido de urbanidade, editando sutilmente a topografia original para criar planos de uso que qualificam os diversos recintos de modo contínuo, o que retoma um tema central da obra de Vilanova Artigas5. Um belo desenho que evidencia essa estratégia é a terceira planta da casa que, embora tendo apenas dois pavimentos, os arquitetos fazem representar para revelar a variada geometria das contenções em meia altura que viabilizam o trecho rebaixado da área social que se estende para o jardim.

Como toda boa interpretação sempre acrescenta mais uma camada àquela matriz que lhe inspira, a casa Boaçava desloca a exploração da oposição dialética entre o desenho do chão e o da construção da espacialidade à matéria: o concreto aparente dos elementos que organizam os espaços ao nível do chão é pigmentado com óxido de ferro enquanto o concreto do volume elevado – a construção – tem pigmentação natural. Metaforicamente o solo se eleva e é reconfigurado, não apenas na sua topografia, mas como matéria que media usos e promove os fechamentos necessários às áreas de serviço. É verdade que o próprio Artigas usou artifício semelhante, como nas bases em pedra da Garagem de Barcos Santa Paula. Entretanto, nas explorações anteriores há uma mudança radical da materialidade entre embasamento e construção, algo presente na arquitetura há séculos. Aqui a exploração é mais sutil e incide sobre uma mesma técnica e uma mesma matéria, que resulta diversa devido à intervenção no processo construtivo. A alteração cromática modifica a ambiência e confere àquele material já amplamente usado na arquitetura uma nova camada de significado que o desloca da industrialização em direção a uma certa artesania, a rememorar técnicas vernáculas6. Nesse aspecto, a Casa Boaçava poderia ser entendida para além da modernidade que informa as suas principais estratégias projetuais.

Falamos do chão. Passemos à construção. Os volumes elevados da arquitetura paulista eram em sua maioria caixas com aberturas predominantemente unidirecionais e empenas cegas7. Definiam uma diferenciação entre um domínio público, que se estendia sob a sombra da casa, e um espaço de intimidade e introspecção, acolhido pelo artefato construído. Na casa Boaçava, a oposição se dá na organização programática da própria casa: espaços coletivos no chão; espaços individuais acima. O coletivo retorna no terraço superior, aberto ao sol. Entretanto, o que mais interessa aqui é o modo como os espaços individuais se dispõem. Ao contrário de uma certa abstração da usual abertura frente-fundos e da repetição modular que caracterizam grande parte da organização dos espaços íntimos das casas modernas, a disposição dos dormitórios da Casa Boaçava os pulveriza em uma estrutura ambiental que autonomiza as unidades ao separá-las por intervalos abertos não funcionalizados. É como se cada célula pudesse exercer sua singularidade e identidade, com privacidade e introspecção, e também usufruir de diferentes visadas do exterior e da experiência de espaços abertos ao se articularem aos intervalos que as separam. Essa ordem, aqui limitada a um conjunto de quatro dormitórios e um escritório, poderia perfeitamente ser ampliada para uma organização de um tecido urbano variado e diverso, em que espaços fechados se alternam a passagens e aberturas. Tais intervalos assumem o comando da lógica formal operando subtrações no volume principal em que a massa prevalece sobre a abertura, ao contrário da matriz formal moderna que privilegiava o vazio, a abertura e a transparência. Uma vez mais, a matéria adquire um protagonismo e inverte a expectativa daquela matriz dominante da Escola Paulista. A oposição entre a massa esculpida e a transparência do térreo acentua a radical distinção entre abertura e reclusão, coletivo e individual. Por outro lado, aquela estrutura ambiental parece informar o que estaria por vir.

Avancemos então quase uma década. Chegamos à ampliação da Casa Boaçava. Como nos ensina Paulo Mendes da Rocha, a beleza de um anexo está no modo como se coloca em relação àquele elemento principal que motivou sua realização. Nesse caso entretanto não se trata de um anexo no sentido usual, em que duas edificações de tempos distintos se organizam com certa diferenciação hierárquica8. Trata-se aqui de um desenvolvimento, uma transformação que introduz novas espacialidades, novas formas e novas relações entre as partes, redefinindo o todo e configurando uma nova unidade: uma cidadela9. Cidadela não como forte ou lugar de proteção, mas como um conjunto de edificações que a um só tempo preservam certa autonomia e constituem um todo. Este todo apresenta-se como uma micro estrutura urbana ao sobrepor à estrutura urbana de fato uma segunda camada que passa a organizar a vida doméstica para além dos seus espaços interiores, mas em uma rede variada de construções e espaços livres que, ao contrário das fortalezas fechadas que usualmente caracterizam as cidadelas medievais, amplia as possibilidades de integração com a paisagem e com a cidade10. A opção pela fragmentação programática e pela variedade volumétrica evita a mera repetição das soluções existentes na primeira casa, que passa a ser uma das partes do todo. À oposição entre a concentração da casa original e a dispersão das novas construções se soma outra oposição: aquela entre a ênfase no desenho do volume e o cuidado na qualificação dos vazios. O apuro na elaboração dos vazios “entre” e “através” dos novos elementos amplifica o sentido da casa não como um objeto contra o fundo do terreno, mas como um redesenho da totalidade do lote, reforçando o uso e a importância dos espaços livres, cuja forma e ambiência os fazem tão relevantes quanto os espaços abrigados11. Se na casa original os vazios são os elementos atípicos e de pequena escala que esculpiam o volume, aqui eles adquirem uma escala em que passam a conformar alguns espaços de sociabilidade e encontro entre os recintos interiores, como no grande deck que se desenvolve desde a rua, tem um momento de sombra sob a nova construção, continua na mesma cota para usufruir da sombra da futura árvore, e desce uma ampla escadaria para conectar a cota inferior do jardim da casa matriz e abrigar uma hidromassagem. Por sua centralidade e escala, transforma-se no protagonista do conjunto: o lugar gregário12. Outro espaço articulador ocorre sobre laje, no segundo pavimento: neste caso, um terraço jardim amplo oferece uma conexão ao ar livre entre o escritório – a “torre” principal da cidadela – e o estar no pavimento superior do novo pavilhão lateral. Aqui se dá uma inversão que modifica a experiência predominante dos espaços: a vista a distância a sudeste, que orienta a maioria das aberturas e a própria implantação que abre a praça naquela direção, deixa de ser referência para a orientação da sala de estar elevada, que se volta, ao contrário, para noroeste, estabelecendo uma abertura visual de menor extensão e portanto com maior intimidade, além de se transbordar para o mencionado terraço jardim. Esse, por sua vez, adquire também maior intimidade e fechamento em relação à paisagem dominante devido à presença do volume edificado do estar superior e ao paisagismo mais denso, oferecendo uma outra experiência ao ar livre, diferente daquela do grande deck-praça.

Se o térreo da nova construção constitui um segundo espaço de convivência, exterior, análogo e complementar à sequência espacial interna e abrigada do térreo da casa original, é na elaboração volumétrica do segundo pavimento que se dá a maior diferenciação em relação à construção pré-existente: os dois volumes quadrados, idênticos, com 6 por 6 metros, constituem duas identidades que se colocam em complemento ao volume original, evitando tanto a unidade da forma simples como a mera repetição do volume original, e produzindo assim um skyline variado. Num contexto diferente, quando chamado a projetar a residência de sua irmã em lote vizinho à sua, Paulo Mendes da Rocha replicou o desenho de sua casa com mínimas variações. Tratava-se ali de um discurso sobre o caráter prototípico da habitação, muito coerente com o ideário moderno da industrialização pautado pela estandardização. Aqui, o caminho é outro, que se afasta do genérico e da repetição, do industrial e do padronizado, para reconhecer o específico e o complementar, o artesanal e o singular.

Aqui o destacamento parcial entre os espaços íntimos autonomizados do segundo pavimento da casa matriz se radicaliza para conceber volumes e espaços independentes, formal e programaticamente. Essa autonomia poderia resultar em um conjunto de elementos desconectados. Entretanto, os arquitetos sabidamente os articulam em uma variedade de conexões que transforma a organização original da casa – linear em baixo, radial em cima, mas com um único elemento articulador definido pela escada central – em uma rede que cria atalhos e pontes, alterna dentro e fora, térreo e pavimento superior, e multiplica as alternativas de acesso entre os pavimentos pela introdução de duas novas escadas. Em outras palavras, a topologia da casa original, linear e funcional, se transforma em uma rede, dispersa e análoga à urbana, não funcionalizada. Essa transformação resulta em uma experiência mais rica e variada do espaço, que é reforçada pelo cuidado na qualificação dos novos recintos em termos de luz, sombra, penumbra, transparência, opacidade e translucidez, intimidade e extroversão. Surgem mais tonalidades entre o aberto e o fechado, o transparente e o opaco, revelando a maturidade de um olhar projetual que não se seduz com a abertura fácil para a paisagem, mas preza a introspecção, a intimidade e o mistério. Tudo isso se revela especialmente no ambiente do escritório – a “torre” – cuja localização no conjunto o transforma em um articulador potente, com múltiplos acessos – desde o segundo pavimento da casa original através da ponte-atalho que se conecta a um dos intervalos abertos; desde a rua e a sombra da praça pela nova escada aberta; desde o terraço e o novo estar. Este destino, protagonista no conjunto, tem o pé-direito elevado a 3,80 metros, o que o singulariza em relação à altura do pavimento convencional em torno de 2,50 metros, predominante nos demais recintos da casa. Associada a essa escala vertical ampliada, a vidraça voltada para a praça e para a paisagem é predominantemente translúcida, gerando uma atmosfera de introspecção que, entretanto, permite a visão da paisagem por um recorte estrategicamente disposto à altura do olhar, redefinindo a relação da vista como um quadro. Essa mesma estratégia de enquadramento de vistas, para a paisagem da cidade e para diferentes paisagens da própria cidadela, comparece ao longo de outros percursos e recintos em pequenas janelas que resguardam o interior ao mesmo tempo em que ampliam o domínio visual que constitui a base do sentido de privacidade e segurança, oferecendo miradas imprevistas em ângulos menos usuais, como na chegada da escada ao estar do segundo pavimento ou o pequeno rasgo no escritório, voltado para a rua.

A “torre” é também um sinal da transformação do repertório que originalmente informou a realização da primeira casa: em lugar da horizontalidade e da transparência características da arquitetura moderna paulista13, predomina o acento vertical e a demarcação mais sutil dos limites entre interior e exterior. Essa verticalidade ultrapassa em altura o volume original, bem como redesenha o chão com mais vigor, não apenas reconhecendo a variação topográfica original, mas criando um pavimento escavado de serviços análogo aos que fazem Artigas na casa Taques Bittencourt ou Paulo Mendes da Rocha na casa Fernando Millan. Nessa operação os arquitetos retomam a mesma distinção entre espaços servidos e servidores, agora em termos espaciais, da disposição espacial visível em corte. As escadas sobrepostas que conectam tanto escritório como serviços à praça reforçam a experiência do deslocamento vertical, e abrem espaço para uma analogia às imagens poéticas do sótão e do porão presentes na Poética do Espaço de Gaston Bachelard.

O deslocamento do objeto funcional em direção à rede articulada de espaços não funcionalizados aponta outra transformação no olhar dos arquitetos: um amolecimento no trato das questões funcionais ao desenhar os novos espaços com uma certa qualidade específica que se realiza na sua materialidade e na conectividade com os espaços adjacentes, ou seja, a partir da ênfase no desenho dos elementos permanentes, e menos condicionados por qualquer aspecto programático, mais circunstancial e impermanente. Isso permitiria imaginar a troca dos usos entre os diversos espaços ou mesmo que possam vir a acomodar no futuro outros usos para além do que se planejou. Sua intencional indeterminação permite pensar o conjunto como uma casa, com os usos propostos nas legendas do projeto, mas como um conjunto de múltiplas habitações, que convivem ao redor dos variados espaços abertos, realizando de fato a ideia da cidadela.

A Cidadela da casa Boaçava parece introduzir uma nova interpretação para aquele topos milenar que conecta casa e cidade em uma relação dialética. Como a cidade, pode ser lida como uma construção que se faz no tempo, sempre inconclusa14. Se ampliarmos essa compreensão, poderíamos dizer que pode vir a ser intergeracional e não autoral, ou resultado de múltiplas contribuições. Isso permite imaginar o seu devir: pensá-la como uma infraestrutura, que será permanentemente completada e ressignificada por seus diferentes usuários, transformada pelas mãos de outros, em outras circunstâncias. Aí talvez resida sua maior beleza.


Carlos Alberto Maciel é arquiteto e doutor em teoria e prática de projeto pela Escola de Arquitetura da UFMG, onde é professor. É sócio do escritório Arquitetos Associados e autor dos livros Arquitetura como Infraestrutura – 3 volumes e Territórios da Universidade. Permanências e Transformação. É editor de MDC.

1 – Este ensaio foi escrito a partir de um encontro fortuito: Fernando mostrou fotos da casa em fase final de construção. Ao vê-las, mencionei que lembrava uma cidadela. Essa impressão convergiu para o que motivou a realização da obra. Algum tempo depois, veio o convite para escrevê-lo, acompanhado de um belo ensaio fotográfico por Leonardo Finotti e pelos impecáveis desenhos do projeto executivo da ampliação da casa. Seu título remete àquele momento. Ele foi originalmente publicado, em espanhol, na revista PLOT – MACIEL, Carlos A. B.. La Ciudadela. PLOT, v. DIC 2021, p. 119-123, 2021 – e em português na revista Projeto em 12 de abril de 2021 – https://revistaprojeto.com.br/acervo/a-cidadela-por-carlos-alberto-maciel/.

2 – PISANI, Daniele. “A cidade é uma casa. A casa é uma cidade”. Vilanova Artigas na história de um topos. Tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Ecidade, 2019.

3 – Projetada por UNA Arquitetos: Cristiane Muniz, Fábio Valentim, Fernanda Barbara, Fernando Viégas. Colaboradores: Ana Paula de Castro, Bruno Gondo, Eduardo Martorelli, Enk Te Winkel, Igor Cortinove, Marta Onofre, Miguel Muralha, Roberto Galvão Jr., Sílio Almeida.

4 – Projetada por UNA Arquitetos: Cristiane Muniz, Fábio Valentim, Fernanda Barbara, Fernando Viégas. Colaboradores: Joaquin Gak, Júlia Jabur, Laís Labate, Larissa Urbano, Manuela Raitelli, Marie Lartigue, Matheus Pardal.

5 – Shundi Iwamizu faz extensa leitura dessa estratégia na obra de Artigas, partindo da análise da Rodoviária de Jaú e percorrendo inúmeros outras obras em que a exploração da oposição dialética entre desenho do chão e da construção está na base da poética do arquiteto. Cf. IWAMIZU, Cesar Shundi. A estação rodoviária de Jaú e a dimensão urbana da arquitetura. São Paulo: FAUUSP, 2008. Dissertação de Mestrado.

6 – Como sugerido pelos próprios arquitetos no memorial do projeto de 2009: “O muro de concreto apóia a construção e divide o sítio longitudinalmente, dando independência às áreas de serviço. Essa base foi pigmentada com óxido de ferro. A presença deste material, que lembra a taipa, faz a transição das áreas externas às internas.” (grifo meu). Cabe aqui uma observação de caráter metodológico: este ensaio foi elaborado a partir da análise das fotografias e dos desenhos do projeto executivo da ampliação da casa, antes da leitura dos memoriais descritivos elaborados pelos arquitetos. Depois de escrito, foi confrontado com os memoriais. As notas relativas a esse “encontro” entre intenções e leituras se apresentam ao longo do texto. As diversas coincidências entre leitura e memorial revelam a consistência entre as intenções projetuais e a obra construída.

7 – Esta definição rápida é obviamente plena de exceções. Entretanto é possível relacionar, sem a pretensão de esgotar o tema, algumas residências que reeditaram este princípio e lhe deram essa mesma formalização, com variações: de Artigas são mais conhecidas a Casa Olga Baeta (1957) com aberturas laterais e empenas na frente e no fundo; a Casa José Mario Taques Bittencourt (1959), que introduz o pátio central e a articulação em meios níveis com rampa que também redesenha o chão, e apresenta empenas laterais que descem para encontrar o solo, antecipando a estratégia da diluição da parede presente na FAUUSP; a Casa Mendes André (1968) com pavilhão longilíneo aberto para a rua e para o fundo do terreno; de Joaquim Guedes, a Residência Cunha Lima (1958) que, além da predominante abertura frente-fundo, introduz por questões geomorfológicas, os famosos quatro pontos de apoio que vieram posteriormente a caracterizar parte da arquitetura paulista; de Carlos Millan, as casas Roberto Millan (1960) e Antônio D’Elboux (1962), ambas de forte inspiração na arquitetura de Le Corbusier; de Paulo Mendes da Rocha, a sua própria casa (a partir de 1964), a Casa Mário Masetti (1967-70), a Casa James King (1972) e a Casa Fernando Milan (a partir de 1970) são as mais conhecidas de uma família de casas brutalistas elevadas sobre poucos apoios gerando uma sombra habitada sob a qual se desenvolvem os jardins ou se prolonga a esfera urbana. Dentre essas, a última, parcialmente cravada na topografia, diferencia os planos social e íntimo entre térreo e pavimento superior e, de modo radical, leva o asfalto da rua para o piso da sala de estar como forma de enfatizar a continuidade entre casa e cidade. Para aprofundar o tema, ver: ACAYABA, Marlene Milan. Residências em São Paulo. 1947-1975. São Paulo: Projeto, 1986. COTRIM, Marcio. Vilanova Artigas. Casas Paulistas. 1967-1981. São Paulo: Romano Guerra Editora, 2017. MAHFUZ, Edson. Transparência e sombra: O plano horizontal na arquitetura paulista. Arquitextos, São Paulo, ano 07, n. 079.01, Vitruvius, dez. 2006 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.079/284&gt;. PISANI, Daniele. Paulo Mendes da Rocha. Obra Completa. São Paulo: Gustavo Gilli, 2013.

8 – Confirma essa leitura a memória descritiva dos autores: “Em continuidade, no tempo, o novo volume é todo construído em planos de concreto aparente. Conexões e proteções são metálicas. A ideia é condensar os dois tempos da obra sem diferenciá-los, como se estivessem à espera de um novo complemento. Ao final, não saberemos o que foi feito antes, a casa, ou seu anexo.”

9 – Da memória descritiva dos autores: “A forma é de cidadela, um vilarejo, com torres, pontes, jardins suspensos, pátios rebaixados e praças cobertas.”

10 – Da memória descritiva dos autores: “O piso de madeira existente se estendeu para todos os espaços exteriores interligando também o jardim ao fundo, de onde se descortina a vista do vale do Pinheiros. A praça se completa com o horizonte. Habita-se a geografia se esquecendo do lote.”

11 – Da memória descritiva dos autores: “O volume que ocupava praticamente todo o lote, respeitando os recuos obrigatórios, ganhou um contraponto com o vazio exterior. São três frentes para essa praça, definidas pelas construções: a casa original com o bloco de concreto pigmentado e as duas alas do anexo. Novamente estabelece continuidade com a rua.”

12 – Da memória descritiva dos autores: “O projeto é a construção de uma praça que passa a ser o centro do conjunto, que articula novos usos aos existentes.”

13 – Ver MAHFUZ, Edson. Transparência e sombra: O plano horizontal na arquitetura paulista. Arquitextos, São Paulo, ano 07, n. 079.01, Vitruvius, dez. 2006 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.079/284&gt;.

14 – Da memória dos autores: “Poderiam ainda surgir mais intervenções, solução aberta.”


Sobre o projeto: Entrevista exclusiva para MDC.

por Cristiane Muniz (C.M.) e Fernando Viégas (F.V.)

MDC – Como vocês contextualizam essa obra no conjunto de toda a sua produção?

C.M. / F.V. – Ao mesmo tempo em que é continuidade de uma obra nossa, acreditamos que seja um trabalho que abriu novas perspectivas de investigação. Partimos de discussões evidentemente conceituais para tomar as decisões formais e construtivas. Alguns projetos posteriores a esse estabelecem desdobramentos de certas questões experimentadas aqui. As casas são modelos para escalas maiores urbanas, como é o caso do Quarteirão da Educação em Diadema.

MDC – Como foi o mecanismo de contratação do projeto?

C.M. / F.V. – A contratação foi direta. Havíamos construído a primeira casa em 2009 e os moradores nos convidaram para ampliarmos a casa em 2019, após a aquisição do terreno vizinho.

MDC – Como foi a fase de concepção do projeto? Houve grandes inflexões conceituais? Vocês destacariam algum momento significativo do processo?

C.M. / F.V. – A principal decisão de projeto foi estabelecer uma continuidade em relação à construção original. Optamos por utilizar os mesmos materiais e os mesmos construtores. Nossa intenção foi diluir os limites do novo e velho, a ponto de não ser possível identificar quem veio antes, ou depois. O que era volume construído, em contraponto, virou uma praça, quase em negativo.

MDC – Nas etapas de desenvolvimento executivo e elaboração de projetos de engenharia houve participação ativa dos autores? Houve variações de projeto decorrentes da interlocução com esses outros atores que modificaram as soluções originais? Se sim, podem comentar as mais importantes?

C.M. / F.V. – A casa original teve um trabalho técnico de calculo estrutural e sistema construtivo muito sofisticado. Paredes de concreto com 17 cm se dobram para formar o volume superior apoiado em dois pilares e uma parede, realizando grandes balanços. A ampliação segue a lógica de planos de concreto verticais e horizontais, sem vigas internas. O maior esforço foi acomodar um grande jardim na cobertura, incluindo algumas pitangueiras. Tecnicamente, o mais complexo foi executar o sistema de condicionamento de ar como um pleno, evitando os dutos.

MDC – Os autores dos projetos tiveram participação no processo de construção/implementação da obra?

C.M. / F.V. – Sim, os arquitetos autores acompanharam toda a execução das obras. A parceria antiga com a construtora facilitou muito o desenvolvimento dos detalhes. Incorporamos, sempre, muitas sugestões dos construtores. Algumas decisões de serralheria, como o portão de vão total, foram feitas diretamente a partir de ensaios de carga na própria obra.

MDC – Vocês destacariam algum fato relevante da vida do edifício/espaço livre após a sua construção?

C.M. / F.V. – O desenho da praça central absorvia um desnível com relação ao fundo do lote. Foi proposta uma arquibancada de contemplação da paisagem da várzea do Rio Pinheiros. Ao longo do projeto conversamos muito com os moradores sobre possíveis usos dessa praça, que formava, de certo modo, o desenho de um anfiteatro aberto. Após a construção, um dos usos imaginados se tornou frequente: espaço para música. Regularmente músicos são convidados para tocar para convidados que se acomodam na arquibancada e configuram um auditório ao ar livre. Emocionante.

MDC – Se esse mesmo problema de projeto chegasse hoje a suas mãos, fariam algo diferente?

C.M. / F.V. – Faríamos tudo exatamente igual. Quase todos os projetos que realizamos, após certo tempo, imaginamos alguns reparos, mas nesse caso não mudaríamos nada, nenhum detalhe.

MDC – Como vocês contextualizam essa obra no panorama da arquitetura contemporânea do seu país?

C.M. / F.V. – Como tudo o que fazemos, acreditamos que seja parte de uma construção cultural coletiva. Tentamos fazer pequenas contribuições ao conhecimento com nossas pesquisas projetuais.

MDC – Há algo relativo ao projeto e ao processo que gostariam de acrescentar e que não foi contemplado pelas perguntas anteriores?

C.M. / F.V. – Um projeto como esse necessita que o processo com os clientes seja de total confiança e de que a relação com os trabalhadores da construção seja de parceria.


projeto executivo

PARTE 1:
PLANTAS, CORTES E ELEVAÇÕES

13 pranchas (pdf).
15,96mb

PARTE 2:
AMPLIAÇÕES

13 pranchas (pdf).
20,97mb

PARTE 3:
DETALHES E MOBILIÁRIO

6 pranchas (pdf).
4,57mb


ficha técnica do projeto

Local: São Paulo – SP
Ano de projeto: 2018
Ano de conclusão: 2020
Autores: UNA arquitetos: Cristiane Muniz, Fabio Valentim, Fernanda Barbara, Fernando Viégas
Colaboração: Joaquin Gak, Júlia Jabur, Laís Labate, Larissa Urbano, Manuela Raitelli, Marie Lartigue, Matheus Pardal


Construção: F2 Engenharia
Estrutura:
Companhia de Projeto
Estrutura de concreto:
Breno Rodrigues
Instalações:
Zomaro
Iluminação:
Foco
Sistemas:
Oguri
Paisagismo:
Soma
Irrigação: Regatec
Ar Condicionado: Drawing
Impermeabilização: Proassp

Fotos: Leonardo Finotti
Contato: contato@unamunizviegas.com.br


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