Sobre o projeto da Praça da Soberania, de Oscar Niemeyer.
Ricardo Farret
À primeira manifestação crítica à proposta da Praça da Soberania, expressa pela Arquiteta Silvia Ficher, imaginava eu uma série de desdobramentos, sendo que alguns se concretizaram outros não. Tudo porque, sabemos todos nós, no Brasil, a crítica arquitetônica é alvo de uma seqüência previsível de reações.
Em primeiro lugar, imaginei eu, um “pelotão de frente”, constituído por amigos e colaboradores do arquiteto Oscar Niemeyer, iria de imediato tomar a defesa do projeto, do autor ou de ambos. Mais ainda, imaginava eu, todos iriam centrar o foco de suas intervenções, não na crítica feita à concepção e oportunidade da Praça em si, mas sim na sua autora. Desqualifica-se o crítico e silencia-se em relação ao objeto criticado.
Para surpresa minha, a primeira manifestação veio do próprio Oscar Niemeyer e, só depois, muito depois, vieram as manifestações dos seus amigos e colaboradores. Na sua manifestação, o arquiteto afirma, em certo trecho, que “Não vou aos jornais em que alguns, alheios aos assuntos da arquitetura e do urbanismo, vêm a público e, sem dizer nada de novo, participam do debate em curso.” Para, mais adiante, afirmar, “É meu direito e obrigação concebe-la e propô-la.” (grifo meu), uma declaração que, no fundo, me parece ter um caráter místico. Errei na previsão da ordem das intervenções, mas não no teor das reações que se seguiram (e ainda seguem) na imprensa.
Em segundo lugar, imaginava uma discussão restrita a arquitetos e, eventualmente, com uma participação mínima do suposto “cliente”, o Governo do Distrito Federal, já que o projeto foi anunciado durante visita do Governador ao escritório de Niemeyer, no Rio de Janeiro. Errei novamente, pois a população manifestou-se em grande escala, condenando a obra, menos pela sua localização, como o fizeram os arquitetos, e mais pela ausência de qualquer função social e pelo desperdício financeiro que ela representa.
Como um parênteses que se impõe, cabe observar que o Governo do Distrito Federal está se especializando em apresentar propostas urbanísticas por meio da imprensa, sem que se saiba as suas razões e grau de prioridades. Estão aí o Plano Lerner, a retomada do Projeto Orla, para citar só dois exemplos. É preciso reconhecer que à qualidade do plano urbanístico do Plano Piloto não correspondeu, nunca, um detalhamento urbanístico compatível com a grandeza da Capital Federal. Há muito tempo defendemos a necessidade de um “plano diretor” de desenho urbano para a Capital, de modo a identificar e propor correção para os inúmeros “pontos negros” existentes, alguns deles comprometendo até mesmo as idéias básicas de Lucio Costa. Dois exemplos singelos podem ser citados: os “penduricalhos” que foram sendo implantados no entorno da Praça dos Três Poderes, como o Mastro da Bandeira, o Panteão da Pátria, os Memoriais, a sede da Procuradoria Geral da República, dentre outros, numa área de Cerrado que deveria garantir a escala bucólica de Brasília. Outro exemplo é caracterizado pela falta de equipamentos de uso coletivo na Esplanada, tais como livraria, papelaria e restaurante, para servir o enorme contingente populacional que para lá se desloca diariamente; a esta lista de equipamentos deve-se acrescentar, mesmo que a contragosto, estacionamentos. Um croquis do próprio Niemeyer propunha uma solução tão singela quanto genial: um rasgo no terreno, no sentido norte-sul, em parte coberto, em parte ao ar livre, mas tudo abaixo da superfície do terreno. Dada a extensão da Esplanada é de se imaginar que haveria duas intervenções dessa natureza. A razão da substituição dessa proposta pela Praça da Soberania, nem Niemeyer, nem seus amigos e colaboradores conseguiram, até agora, mostrar.
Essa história toda me faz lembrar um artigo que escrevi, há mais de 10 anos atrás. Na ocasião, Niemeyer escreveu um artigo no Jornal do Brasil, “Quando as catedrais eram brancas”, título que parodiava uma obra de Le Corbusier. O artigo procurava justificar a pintura, na cor branca, realizada nos pilares da Catedral. Manifestando minha indignação, escrevi o artigo “Quando a catedral era cinza”, não só expondo minha contrariedade, como arquiteto, à maquillage de uma obra que já estava no imaginário social da população, mas, também, como cidadão, quando indagava – e este era o objetivo principal do artigo – em que momento os espaços públicos, sejam eles arquitetônicos ou urbanísticos, deixam de pertencer aos arquitetos que os projetam e passam ao domínio público. Em outras palavras, podem elas ser alteradas por livre arbítrio e capricho de seus autores, quando já absorvidas pela população, a quem, no final, todas elas se destinam?
A resposta à minha indagação de 10 anos atrás veio, em parte, agora, durante os debates sobre a Praça da Soberania, quando foi amplamente revelado que a Lei do Tombamento de Brasília tem um artigo que, expressamente, permite que Lucio Costa e Oscar Niemeyer possam (quase)tudo na organização espacial da Capital Federal.
Ricardo Farret
Arquiteto, ex-professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília.
Leia mais sobre a Praça da Soberania em mdc.
Pingback: Praça da Soberania: crônica de uma polêmica « mdc . revista de arquitetura e urbanismo
Pingback: Praça da Soberania: crônica de uma polêmica – Danilo Matoso Macedo