Arquitetura moderna e o lugar: uma nova topologia

mdc 3Flávio de Lemos Carsalade

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Uma das discussões mais interessantes sobre o Movimento Moderno na Arquitetura é a relação dos novos edifícios com o lugar onde se assentam, o que, é claro, remete à face pública do edifício quando esse lugar é a cidade. Passado o período mais questionador quando a crítica ao Modernismo era excessivamente áspera – até mesmo para que a arquitetura pudesse se renovar – podemos hoje entender melhor que muitas dessas críticas não se justificavam da forma como elas foram elaboradas e, nesse caso, inclui-se justamente  o problema da relação com o lugar.

Dizia-se que a Arquitetura Modernista desconhecia ou negava o lugar, privilegiando o edifício isolado e auto-referente. De fato, a atitude modernista pressupunha os aspectos de inovação (afinal de contas se considerava o “fim da história”) e de transformação (o ideal de se “corrigir” cientificamente os erros dos edifícios e cidades), aspectos esses característicos não apenas da arquitetura, mas da própria atitude modernizante [1]. Assim, antes de negar o lugar, a arquitetura moderna buscava, por um lado, transformar o lugar e, por outro, inovadora que era, se estabelecer em contraste.

A nova cidade era o ideal a ser perseguido: novas formas de relação do prédio com a cidade. Daí surgiram as idéias do pilotis, do descortinamento da paisagem, da redução de fronteiras (ou sua atenuação) entre o público e o privado, enfim uma nova ordem urbana. Na postura modernista era importante que o espaço aberto se imiscuísse entre os prédios, livre, higiênico, claro. A questão assim colocada adquiria formas próprias quando o lugar dos novos edifícios não fosse um campo aberto (como a Villa Savoye) ou cidades absolutamente novas (como Brasília). A postura modernista com relação à pré-existência assume uma riqueza enorme quando analisada caso a caso: em Belo Horizonte tratava-se de substituir as formas arcaicas dos “neos” e garantir a vocação moderna da cidade, na avenida Paulista tratava-se de garantir a pujança econômica e a presença forte de cada instituição (fazendo com que cada prédio fosse necessariamente um indivíduo), no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, tratava-se de mostrar como a nova estética e a nova tecnologia propiciavam novas formas de se dialogar e valorizar a paisagem local.

Talvez o sonho final fosse mesmo uma substituição completa em busca da nova ordem urbana. Mas no seu processo real de transformação das cidades, aquele que o­corria no dia-a-dia, ao largo das especulações e ensaios teóricos, na prática profissional c­otidiana, a arquitetura moderna deixou de seu primeiro i­ntento de transformar o lugar para buscar n­ovas formas de com ele dialogar, não no sentido de respeitar as pré-existências e trabalhar de forma harmônica (ou similar) mas de re-interpretá-las, buscar novas formas de relação do objeto com o lugar [2].

Tendo vivido a experiência de projetar nos últimos vinte e cinco anos, a minha própria obra e pensamento, de certa forma, refletem essa inquietação e essa busca de uma nova topologia urbana e, embora não seja a atitude acadêmica mais usual, não resisto à tentação de examinar esses aspectos na minha própria obra, impulsionado pelas características livres desta publicação. De qualquer forma, a experiência de quem viveu e projetou nesse tempo pode ser uma fonte interessante de dados para reflexão. Assim sendo, selecionei alguns exemplos, muitos deles resultantes de concursos públicos e não construídos (afinal os construídos já estão expostos…), para explorar exatamente esse caráter público, os quais passo a expor a seguir.

casa do jornalista

Belo Horizonte, 1982 (Fig. 1)
Arquitetos Ângela Roldão, Flavio Carsalade, Gustavo Penna,  Luis Antônio Fontes Queirós
(1º  lugar em Concurso Público)
O projeto propõe um amplo espaço público no pilotis, a “Praça da Notícia” e para tanto tenta minimizar a presença do prédio e reforçar a luminosidade da praça, retirando os pilares intermediários (através do vão de vinte e cinco metros propiciado pela viga-ponte metálica) e pelo pé-direito de 15 metros do pilotis.

rede bandeirantes de televisão/sucursal belo horizonte

Belo Horizonte, 1981
Arquitetos Flavio Carsalade e Gustavo Penna
O projeto propõe uma ampla janela para a cidade, propiciada pelo volume prismático e pela situação da avenida Raja Gabaglia, na cumeada da montanha.

edifício sede hemobel laboratório

Belo Horizonte, 1985 (Fig. 2)
Arquitetos Antônio de Pádua Fialho, Flavio Carsalade e Paulo Henrique Lopes
Os planos formadores do edifício exploram as possibilidades do lote, de esquina em ângulo agudo.

edifício sede do demetrô

Belo Horizonte, 1987 (Fig. 3)
Arquitetos Antônio de Pádua Fialho, Flavio Carsalade e Paulo Henrique Lopes
(3o lugar em Concurso Público)
A situação do terreno, linear, paralelo ao ribeirão Arrudas e à cavaleira sobre a cidade,  com duas entradas em cada uma das suas extremidades possibilitou a criação de uma rua pública de pedestres que se beneficiasse do potencial do terreno.

museu de arte de belo horizonte

Belo Horizonte, 1990  (Fig. 4)
Arquitetos Antônio de Pádua Fialho, Flavio Carsalade e Paulo Henrique Lopes
(Participante de Concurso Público)
A idéia chave do projeto foi a criação de uma grande superfície plana que se estendia ao longo da avenida dos Andradas, criando entre ela e os espaços de exposição um área intersticial por onde passaria uma grande rampa pública de pedestres ligando o viaduto da Floresta à praça da Estação.

parque amilcar vianna martins

Belo Horizonte, 1991 (Fig. 5)
Arquitetos Fernando Ramos, Flavio Carsalade, Gaston Oporto e José Eduardo Ferolla
Da situação topográfica da Caixa d’Água do Bairro Cruzeiro, na parte alta da avenida Afonso Pena, resultam, para esta, taludes de fraco apelo visual e pouca conexão, para a cidade, uma vista exuberante. O projeto propõe, para a avenida Afonso Pena, uma conexão forte através do elevador e da passarela metálica e para seus taludes um tratamento em jardins escalonados que criam uma expressão plástica mais vigorosa e, para a vista da cidade, um amplo deck de observação em balanço sobre a montanha.

parque linear do arrudas

Belo Horizonte, 1989 (Fig. 6)
Arquitetos Carlos Antônio Leite Brandão, E­duardo Mascarenhas, Fernando Gontijo R­amos, Flavio Carsalade,  Humberto C­arneiro, José Eduardo Ferolla, Jurema Marteletto R­uggani, Marcos Emídio Fonseca
(Menção Honrosa no concurso nacional “BH Centro” para revitalização do centro de Belo Horizonte)
A proposta do parque faz “costura” norte-sul e leste-oeste da cidade rompida pela linha férrea, através da ligação ininterrupta de pedestres desde o prédio da Rodoviária até a Serraria Souza Pinto e centro-bairro pela grande laje que cobre o metrô e aí cria um amplo espaço público.

edifício sede ordem dos advogados do brasil de patos de minas

Patos de Minas 1996
Arquitetos Antônio de Pádua Fialho, Flavio Carsalade e Paulo Henrique Lopes
O grande pórtico na esquina do terreno triangular cria a interface entre a cidade e a instituição.

memorial do centenário de campo grande

Campo Grande/Mato Grosso do Sul, 1998
(Fig. 7)
Arquitetos Alexandre Brasil,  Carlos Alberto Maciel e Flavio Carsalade
(Terceiro Lugar no “Concurso nacional para o edifício comemorativo dos cem anos da cidade de Campo Grande)/ Mato Grosso do Sul” – 1998
Todo o projeto se baseia na criação de um percurso ligando as várias entradas do terreno, onde situações arquitetônicas e paisagísticas vão ocorrendo em sucessão.

paço cultural da liberdade

praça anexa à Se-cretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2000
Arquitetos Alexandre Brasil, Carlos Alberto Maciel e Flavio Carsalade
A praça anexa às casas que abrigam a Secretaria Estadual da Cultura aproveita terrenos vagos de propriedade pública e dão dimensão pública e de percurso urbano à eles. n

referências bibliográficas

ABASCAL, Eunice Helena Sguizzardi. Cidade e arquitetura contemporânea: uma relação necessária. Texto in Vitruvius, 2005.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

notas

1.  “Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. (…) Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, ‘tudo o que é sólido desmancha no ar”. (BERMAN, 1988, p. 15)
2.  “O modelo de espaço ordenado, tomando a natureza como enquadramento de edifícios “dispostos no verde” em que uma renovação formal alimenta-se do ideário iluminista de “fé no progresso da razão” veio sendo repensado” (ABASCAL, 2005)

flavio de lemos carsalade
Formado em Arquitetura e Urbanismo pela Escola  de  Arquitetura  da  UFMG  em  1979, Doutorando na Universidade Federal da Bahia – 2003, na área de patrimônio cultural, Mestre em Arquitetura pela Escola de Arquitetura da UFMG – 1997, professor da Escola de Arquitetura da UFMG, desde 1982  onde exerceu a vice-diretoria no período de 1989/1991. Atualmente Secretário Municipal de Administração Regional Pampulha, Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, tendo atuado como presidente do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais  (IEPHA/MG ), entre 1999 a 2002 e presidente do Departamento de Minas Gerais do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB/MG) nas gestões de 1996/1997 e 1998/1999. Atuou ainda como profissional liberal na área de arquitetura e urbanismo e como Professor visitante na “University of Washington”.  Arquiteto premiado em vários concursos nacionais de arquitetura.

contato: flavio.carsalade@terra.com.br

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